Caixa em formato de coração
Conto escrito em outubro de 2009
Caixa em Formato de Coração
1
Vicente aguardava o momento certo para agir. Suas características mais marcantes eram a frieza e a paciência. No entanto, naquele “serviço” (com aspas porque dessa vez ele não faria o trabalho de bom grado e nem receberia honorários) Vicente estava nervoso. Apesar de ter confiança em suas habilidades, ele precisou clamar mentalmente por autocontrole. Não era todo dia que se matava uma criança e não era todo dia que se tinha um morto como cliente. Péssimo cliente por sinal.
O plano era esperar todos na casa dormirem para então intoxicar a menina de 11 anos, mas estava armado com uma pistola munida de silenciador para o caso de algo sair errado. Escondendo seu corpo grandalhão ao lado da máquina de lavar roupas na lavanderia, Vicente tinha frio, fome e um mau pressentimento. Frio em pleno dezembro! Como pode? Era sinal de mau agouro!
Já passava das onze da noite e o matador não acreditava que alguém fosse até a lavanderia, mesmo assim, receava ser descoberto e ter de realizar uma chacina, matando a família toda. Era uma família bonita, diga-se de passagem, descendentes de europeus a julgar pela cor da pele e dos olhos. Mas que se dane a aparência! Vicente nunca se importara se sua vítima era gorda ou magra, feia ou bonita, branca ou negra. Mas se importava se sua vítima fosse uma criança, como era o caso. Vicente não matava crianças e, de todo modo, nunca haviam solicitado que ele vitimasse menores de 16 anos. E o pior é que aquela simples garotinha provavelmente não seria a única pequena a ser assassinada. Seu cliente misterioso parecia desejar um rio de sangue de crianças para atingir seu objetivo. Vicente pensou várias vezes em desistir do assassinato, mas também tinha família! Tinha uma esposa e duas filhas. O que seriam delas se ele recusasse a ordem do maldito? Antes uma menina desconhecida morta do que minhas filhas assombradas pro resto da vida por um espírito, concluiu ele.
Por fim, a casa silenciou totalmente. Saiu da lavanderia devagar, evitando qualquer ruído. Dirigiu-se ao quarto da garota no andar superior. A casa estava cheia enfeitada com artigos natalinos. Que ótimo presente Vicente daria para aquela família! A menina, pequena e de cabelos dourados, dormia serenamente quando o assassino entrou no quarto. Agora o matador teria que ser ágil, ou acabaria se compadecendo da criança e desistindo. Pegou o frasco com uma única cápsula composta de cianureto. Se tudo desse certo, assim que chegasse ao estômago da menina, a cápsula se romperia, liberando o veneno, que, em questão de segundos, paralisaria todo o sistema nervoso dela, a morte seria quase que instantânea e, se Deus fosse bondoso, indolor.
Vicente abriu a boca da garota e jogou a cápsula garganta a baixo. A loirinha acordou engasgando e o assassino prontamente tapou a boca dela, abafando um grito iminente e garantindo que ela engolisse o veneno. A menina se debateu e resmungou por alguns instantes, mas logo seu corpo foi se enrijecendo até que ela ficou completamente paralisada... morta. Agora viria a segunda parte da missão.
2
Passava da uma da madrugada, já era natal. Na casa de Paulo todos haviam acabado de cear e conversavam à mesa enquanto o farto jantar era digerido. Sua filha, a caçula da família, estava ansiosa e queria receber seu presente naquele momento. Paulo desconversou, dizendo que o Papai Noel ainda não havia deixado os presentes, mas com seus 10 anos Rose não acreditava mais no bom velhinho. A garota era esperta, sabia que os presentes já haviam sido comprados e estavam escondidos em algum lugar.
—Vá escovar os dentes e dormir, Rose, assim que acordar, amanhã, seu presente estará te aguardando ao lado da árvore de natal – disse Beatriz, esposa de Paulo.
Rose foi visivelmente emburrada para seu quarto e não deu boa-noite pra ninguém.
Paulo e Beatriz eram casados há quinze anos e tinham dois filhos; Rose, a mais nova, e César de 14 anos. A menina era extrovertida e simpática, o menino era exatamente o contrário. Paulo, como todo pai, dizia gostar dos dois igualmente, mas, no fundo, sua preferida era Rose, aliás, ele nem conhecia César muito bem, o garoto não gostava de conversas, preferia se isolar atrás do videogame e do computador.
—Boa noite pra vocês – falou César.
Os pais responderam o garoto e ele deixou a sala de jantar sem expressar nenhum sentimento, nem raiva, nem ansiedade, nem tristeza, nem nada. Era impossível descobrir o que se passava por sua cabeça.
—Crianças fantásticas você tem – comentou Paulo com a mulher. – Em pleno natal a caçula vai dormir sem ao menos dizer boa noite.
—Ninguém é perfeito.
Paulo se espreguiçou. Era um empresário no ramo da informática e levava uma vida mais ou menos confortável e tranquila, sem aborrecimentos, apesar de ter passado por uma juventude cheia de brincadeiras de mau gosto.
—Acho que já vou deixar os presentes na árvore – disse ele.
—As crianças vão ouvir e abri-los antes da hora.
—Que se dane, já é natal mesmo e eles não são mais bebês para ficarem esperando o Papai Noel, até a Rose já não sonha mais com essas mentiras.
—Porque você contou pra ela no ano passado que o intuito do Papai Noel era criar mentes consumistas – Beatriz parecia gostar de jogar a verdade na cara do marido.
—Não quero filhos alienados – disse ele, começando a se zangar.
—Então, faça como achar melhor, quem comprou os presentes foi você mesmo.
E Paulo fez o que ele achou melhor. Deixou a caixa verde retangular com o presente de César e a rosa em formato de coração de Rose rente ao pé da árvore natalina e foi dormir.
Acordou por volta das dez da manhã. Encontrou a mulher no final do corredor, debruçada no parapeito e se juntou a ela. Os filhos lá embaixo, na sala, começavam a abrir seus presentes. A curiosidade de Rose em relação ao presente do irmão foi maior do que em relação ao dela, e a menina esperou César abrir o seu.
—Legal, um Playstation 3 – comentou César, sem mostrar grande entusiasmo.
Rose, que não se interessava por jogos eletrônicos, não opinou sobre o presente do irmão. Voltou-se para sua caixa grande, rosa e em formato de coração. Desfez o nó prateado. Quando abriu a tampa da caixa seus olhos se arregalaram, não por alegria, mas sim por terror.
De onde estava, Paulo não pode ver o brinquedo, mas devia ser uma boneca Juju do tamanho de uma criança de 3 anos, que fala e anda.
César sorriu.
—A Rose ganhou um defunto! – o menino pareceu saborear o pavor no rosto da irmã.
Rose deu um grito estridente. Paulo e Beatriz desceram correndo as escadas. Ao ver a menina morta, deitada em posição fetal dentro da enorme caixa, Beatriz pegou sua filha e a afastou do presente macabro. As duas ficaram abraçadas, chorando ao pé da escada. Paulo não teve reação, apenas observou incrédulo a criança morta. César olhou para o pai, esperando um comentário.
—Quem é essa menina? – perguntou César ao pai, segurando seu novo videogame.
—Eu não sei.
Paulo se aproximou da caixa e pôs dois dedos na jugular da menina, mas sabia que não ia encontrar pulsação e realmente não encontrou. Apesar de não existir nenhum ferimento exposto, a face pálida, os lábios roxos e os olhos vidrados da garota revelavam que ela estava mortinha da silva. E carregava um pedaço de folha de caderno na mão. Paulo pegou o bilhete e leu a mensagem de uma única palavra escrita com caneta de tinta vermelha. “SUICÍDIO”.
3
Depois de passar boa parte do Natal prestando depoimento na delegacia, Paulo voltava de táxi para casa, tentando montar um quebra-cabeça imaginário que pudesse ajudá-lo a descobrir quem foi o desgraçado que mandou o corpo da garotinha para sua família. As perguntas que o delegado e os investigadores fizeram deviam abrir um leque de possíveis suspeitos, mas pelo contrário, não haviam suspeitos! Paulo ainda podia ouvir nitidamente o delegado perguntando: “Quais são seus piores inimigos?”. Paulo não tinha mais nenhum inimigo. Nem mesmo seus concorrentes não eram baixos o suficiente para invadirem sua residência e deixar um cadáver numa caixa em formato de coração. O investigador havia dito: “Alguém deve ter algum motivo para ter ódio de você”. Apenas uma pessoa tinha motivos para ter ódio de Paulo, mas essa pessoa já estava morta. E quanto aquele bilhete? SUICÍDIO. Suicídio... Duas peças do quebra-cabeça se encaixaram. A pessoa que devia odiar Paulo era Jonas um adolescente que morrera há mais de vinte anos e a causa mortis fora suicídio por ingestão de cianureto. A morte da garotinha foi provavelmente causada por envenenamento, então três peças do quebra-cabeça se encaixariam caso a autópsia revelasse cianureto em seu organismo. Perfeito, Paulo tinha quase certeza que o crime tinha a ver com o suicídio de Jonas, mas quem estaria por trás do crime? Seria possível que Jonas tivesse voltado do além para cometer esse tipo de atrocidade? E o que o assassino queria com aquilo?
O delegado disse que faria o maior número de conexões possíveis entre a família da garota e a de Paulo para tentar chegar ao assassino.
4
O segundo cadáver veio numa outra caixa em forma de coração deixada no quarto do casal no dia 06 de janeiro. Dessa vez a caixa era pequena e azul e trazia o corpo de um bebê de menos de 1 ano. Em suas mãozinhas estavam um bilhete com uma mensagem um pouco diferente da primeira: “SUICIDE-SE”. Beatriz não suportou ver a criança, passou mal e agora se recuperava do choque no hospital. César e Rose estavam na casa dos tios enquanto Paulo estava na delegacia. A autópsia da primeira criança confirmou a hipótese de envenenamento por cianureto e a segunda criança provavelmente provara do mesmo veneno. As três famílias não tinham nada, nem nenhum conhecido em comum, o que levou a polícia a crer que algum inimigo de Paulo estava selecionando vítimas aleatórias para atingir o empresário de alguma maneira. A polícia deixou claro para Paulo quem eram os principais suspeitos: um concorrente de sua empresa e um ex-vizinho com quem Paulo teve uma briga feia anos atrás. Mas Paulo não acreditava que eles fossem os culpados, tanto o outro empresário quanto seu ex-vizinho eram covardes, mas não seriam infanticidas. O principal suspeito para Paulo era Jonas, mas como dizer pra polícia que suspeitava de um morto?
Os policiais recomendaram ao empresário que fossem passar um tempo longe de casa e, se possível, que deixassem definitivamente a residência atual.
5
Paulo seguiu os conselhos da polícia. Mudou-se de casa, ficou uma semana sem ir trabalhar e quando voltou ao serviço a segurança da empresa estava reforçada. Dentro de seu escritório Paulo encontrou algo que fez seu sangue gelar. Uma caixa de formato de coração. Era bem grande e verde. Paulo amedrontado não tocou na caixa, chamou a polícia imediatamente. O mesmo investigador que lhe atendera nas duas últimas ocorrências apareceu na empresa em poucos minutos. Era o investigador Carvalho, foi ele quem abriu a caixa e encontrou o que todos esperavam encontrar; o corpo de uma criança, agora um menino de não mais que cinco anos. O investigador Carvalho leu o bilhete que o mais novo presente de Paulo trazia e, então foi ter com o empresário.
—Dessa vez o bilhete traz uma mensagem um pouco maior. Consegue reconhecer essa letra? – perguntou o policial, entregando o papel para Paulo.
“SUICIDE-SE, OU AS PRÓXIMAS VÍTIMAS SERÃO SEUS FILHOS”
Paulo ficou estático, apavorado com a mensagem. O assassino se mostrava capaz de tudo. Seus filhos estariam em grande perigo enquanto Paulo não se suicidasse.
—Reconhece a letra? – repetiu o policial.
A boca de Paulo estava seca. Tudo que ele conseguiu fazer foi balançar a cabeça em sinal negativo.
—Dispense todos os seus funcionários, sua empresa tem de estar exatamente do jeito que está agora para que os peritos possam trabalhar com mais perfeição. A imprensa já está curiosa e não vão demorar a te perturbar, mas recomendo que não dê nenhuma declaração por enquanto. Não quero te assustar, senhor Paulo, mas esse é o caso mais feio que eu já vi – disse o investigador, e se retirou do escritório.
Paulo caiu de joelhos e começou a chorar.
—Por que, Jonas? Por quê? – questionou Paulo, cobrindo com as mãos o rosto molhado de lágrimas. – Eu já me arrependi do que fiz pra você! Eu mudei, eu não mereço mais passar por isso.
6
Paulo estava dormindo. Sua nova casa possuía um sistema de alarme que dispararia caso algum intruso ousasse invadi-la. Tinha o sono leve e se algum miserável tentasse tocar um dedo em suas crianças ia sentir o sabor do chumbo das balas de sua pistola calibre 45 escondida embaixo de seu travesseiro.
No meio da madrugada, acordou com um calafrio percorrendo sua espinha. Havia um adolescente maltrapilho, parado no pé da cama, observando-o. Beatriz dormia tranquilamente. Paulo tateou embaixo do travesseiro a procura da arma.
—Não fai enconfrar nada – disse o moleque, com voz fanhosa.
Paulo só reconheceu Jonas pela voz, aquela voz fanha maldita que rendera tantas piadas no passado. E então Paulo percebeu que o corpo do garoto não era físico, era um espírito.
—O que você quer de mim? – perguntou Paulo, chorando.
—Fofê be fez pafar balditos 20 anos no fale dos fuifidas, fofê não fabe o que eu quero de fofê?
—Do que você está falando?
—Não banca o inofente, seu palhafo! – a voz de Jonas nervoso seria cômica não fosse assustadora. – Eu me fuifidei por fua culpa, pafei finte anosf num lugar pior que o inferno, já não baftafe a merda de fida que eu tife. Agora eu quero fer fofê pafar pelo befbo que eu.
Paulo estava chorando feito criança.
—Você matou crianças inocentes! – acusou Paulo.
—Na ferdade eu bandei outro cara batar.
—Então por que não manda esse cara vir me matar de uma vez?
—Fofê é um palhafo befbo! Eu já falei que quero que fofê pafe por onbe eu pafei e se fofê não se batar fofê não fai pro fale dos fuifidas!
O fantasma desapareceu num instante e Paulo não teve certeza se aquilo foi real ou imaginário. Beatriz continuava dormindo.
7
Na mesma madrugada, Paulo deu um beijo na mulher e nas crianças enquanto elas dormiam, deixou uma carta de despedida escrita numa folha de caderno. Pôs a carta sobre a escrivaninha no quarto de Rose e saiu de pijamas para a rua. Caminhou sem pressa até o centro velho de São Paulo. O Sol ameaçava surgir no horizonte. Havia um homem grandalhão sentado no parapeito do viaduto Santa Ifigênia. Paulo foi até ele.
—Não tem medo de cair lá embaixo? – perguntou Paulo.
O homem o olhou sem interesse.
—A ideia é essa – respondeu.
—Que coincidência, eu também vim para cair.
Paulo apoiou-se no parapeito e observou o fraco movimento lá embaixo na Av. Prestes Maia.
—Qual o seu problema? – perguntou Paulo.
—Eu venho cometendo muita coisa errada ultimamente.
—Coisa errada? Como humilhar um fanho até fazê-lo se matar?
—Coisa mais errada do que matar uma pessoa adulta – respondeu o outro suicida.
Paulo apertou os lábios e concordou com a cabeça. Não sabia quem era o outro homem nem de que tipo de “coisa errada” ele estava falando, também não era hora de pensar em qual pecado era maior.
—Por acaso, seu nome não é Paulo... ou é? – perguntou o homem.
—Como você sabe?
—Um tal de Jonas me falou muito de você – disse o homem. – Bom, foi um prazer conhecê-lo, Paulo, mas vou me jogar antes que apareça alguém tentando bancar o heroi.
Paulo não teve tempo de entender muita coisa. Ver o cara se jogar não foi nada agradável. Pior ainda foi o som do baque da queda. Som de ossos quebrando. Também veio o som de freadas de carros e buzinas. Som de morte. Paulo se jogou de cabeça e morreu bem próximo de Vicente.
FIM