top of page

Castelo de Cartas

Série americana House of Cards desmistifica a ideia de que o público de ficção não se interessa por política

Matéria publicada originalmente em 17 de novembro de 2016 no blog Verbatômico

Foto: Netflix/Divulgação

Kevin Spacey interpreta o político Frank Underwood

Coincidências?...

Séculos atrás, Oscar Wilde disse que “a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida”. A citação do escritor irlandês parece se encaixar perfeitamente na série House of Cards, exibida no serviço de streaming Netflix. O conturbado cenário político enfrentado pelo Brasil nos últimos anos coincidiu com o sucesso arrebatador da série, que estreou em 2013, e não tardou para que os espectadores começassem a comparar eventos que aconteceram na série com outros que se “repetiram” na vida real. Embora House of Cards seja baseada na política norte-americana, o público brasileiro também não deixou de traçar paralelos entre situações da ficção com fatos ocorridos em Brasília. Foram tantas coincidências que a própria Netflix brincou, mais de uma vez, com a questão.

No dia 16 de março deste ano, jornais brasileiros noticiavam o vazamento de um áudio, fruto de um grampo telefônico, em que a (até então) presidente Dilma Rousseff conversava com seu mentor político, o ex-presidente Lula. No diálogo, Dilma falava que enviaria um assessor para entregar um termo de posse (de ministro chefe da Casa Civil) a Lula e que ele deveria usar o documento “em caso de necessidade”. O caso repercutiu mundialmente e gerou polêmicas. No mesmo dia, o perfil oficial de House of Cards no Twitter publicou um gif em que Francis ‘Frank’ Underwood, o protagonista da série interpretado por Kevin Spacey, aparece olhando (provavelmente) para um televisor e abrindo um largo sorriso. Junto ao gif, lia-se a seguinte mensagem: “Watching today’s Brazilian news coverage”, ou, em tradução livre: “Assistindo à cobertura de notícias de hoje do Brasil”.

Em uma outra oportunidade, a Netflix gravou um vídeo sobre spoilers com o ator Michael Kelly, que interpreta o chefe de gabinete Douglas ‘Doug’ Stamper. Na gravação, o personagem dirige-se especificamente aos fãs brasileiros da série que reclamam de revelações da trama divulgadas pelas próprias mídias digitais oficiais de House of Cards. “Sejamos francos”, diz Doug Stamper. “Vocês já recebem spoilers só de assistir aos noticiários. ” Em seguida o personagem brinca que fez uma pontuação baixa no quiz “Aconteceu em Brasília ou em House of Cards? ” — jogo de perguntas em que o jogador deve responder se determinada situação ocorreu (de verdade) em Brasília ou apenas na ficção americana.

A atriz e professora universitária Glória Tenório Negrelos é grande admiradora de House of Cards, tanto que seu tema de mestrado é baseado em como jornalistas enxergam essa obra. Glória, que também escreveu um artigo sobre a série reconhecido internacionalmente, entende que é natural fazer comparações entre a ficção e a realidade, mas não é grande entusiasta dessa atitude. “Eu quero morrer quando eu ouço isso! ”, brinca ela. “É natural que a gente faça associações, é um hábito do ser humano. O aluno compara o professor com o vizinho, a gente olha um aluno e fala ‘esse rapaz é a cara do Tom Hanks’, mas comparar o Frank com o Eduardo Cunha, com o Trump?! Não! Nem pensar! ”. A professora também lembra que em uma ação de marketing da Netflix, em parceria com a editora Abril, colocaram Frank Underwood numa capa da Veja, como se a revista estivesse noticiando de verdade a campanha presidencial do personagem. “Isso é natural, mas não é o certo. São situações e situações”, explica.

 

 

 

 

 

... Ou destino?

O grande mentor da série é o multifacetado Kevin Spacey, ganhador do Oscar de Melhor Ator em 2000 por sua interpretação em Beleza Americana. Kevin, além de produzir a obra, construiu e atua no papel do protagonista. Frank (ele só é chamado pelo primeiro nome, Francis, pelos mais íntimos) é manipulador, maquiavélico, cruel e vaidoso. Embora algumas dessas características, em especial o narcisismo, possa remeter ao personagem Dorian Gray, do já mencionado autor Oscar Wilde, Frank é baseado em outra personalidade europeia: Ricardo III. A esposa de Underwood, Claire, divide o protagonismo da série com o marido. Interpretada por Robin Wright, Claire Underwood é baseada em Lady Macbeth, de Shakespeare, e compartilha do maquiavelismo de Frank, sendo talvez a maior estrategista da trama.

House of Cards americana é uma adaptação de uma série britânica baseada no livro homônimo de Michael Dobbs. Kevin Spacey tomou conhecimento da obra inglesa e cismou em realizar uma adaptação para os moldes da política americana. O trabalho foi árduo. A professora Glória conta que ele precisou se desdobrar para conseguir bancar a série, antes de selar o acordo com a Netflix. “Ele [Kevin] estava morando em Londres quando decidiu produzir a série. Ele voltou para os Estados Unidos decidido a realizar o projeto. Então, para levantar grana [pra rodar as filmagens] ele foi atrás de acordos, correu, fez um monte de propaganda…”, conta Glória.

Kevin evita falar sobre seus personagens. Em uma sabatina com jornalistas para promover a estreia da segunda temporada, foi perguntado ao ator como ele descreveria Frank Underwood. Sua resposta foi bem direta: “Minha perspectiva como ator sempre foi servir ao roteiro e não julgar meus personagens. Não é meu trabalho fazer julgamentos morais nem ter opiniões. Isso eu deixo à audiência”. Na mesma entrevista, perguntado se o sucesso da série o surpreendeu, Kevin deixou bem claro seu tom altamente crítico e ácido: “Eu sempre me surpreendo com o sucesso de filmes horríveis, de modo que, obviamente, me surpreendeu que uma obra boa funcionasse”.

 

 

 

 

 

Big data

Atualmente, um tema que vem ganhando notoriedade junto ao público de séries e filmes é a chamada análise de big data, em que companhias fazem uma espécie de pesquisa de opinião com seus clientes só que sem perguntar nada diretamente a eles. Para isso é checada uma imensa quantidade de dados que o consumidor “entrega” para a empresa, muitas vezes sem perceber. Por exemplo, se você assiste muitos filmes de ação por meio de streaming, a operadora fica sabendo que você gosta desse tipo de filme. Caso a maioria dos assinantes seja como você e também dê preferência a películas de ação, a empresa reúne esses dados e acaba por concluir que precisa investir mais nesse ramo do cinema, pois é o que seus clientes gostam.

Vem sendo bastante difundido que a Netflix é craque em análise de big data e que seu portfólio é montado com base no resultado dessa pesquisa. Perguntada pela nossa reportagem se ela acredita que House of Cards possa ter sido criada a partir de big data, a professora Glória diz que é possível, porém ressalta que o projeto é algo que Kevin Spacey faria mesmo se não contasse com o apoio da Netflix. “Eles fazem uma pesquisa, é lógico, pra saber o que as pessoas querem, inclusive um monte de seriados com roteiros fracos possivelmente contaram [com pesquisa de big data] ”, diz ela. “Stranger ThingsOrange is The New Black, seriados que o público não precisa pensar muito, que são clichês, mas o pessoal curte, eles fazem porque vai dar dinheiro. Agora, algo como House of Cards, que demanda mais pensamento, pode até ser que a Netflix tenha visto que o público queria algo com mais política, mas o Kevin já estava correndo atrás, independente da Netflix ”, completa.

Resenha

Produzida pela Trigger Street (produtora que pertence a Kevin Spacey) exclusivamente para a NetflixHouse of Cards conta com um grande time em sua produção, que inclui (além do próprio Kevin Spacey) Beau Willimon (roteirista de Tudo Pelo Poder), David Fincher (diretor de Clube da Luta) e Robin Wright (Jenny Curran em Forrest Gump).

 

O elenco da série também não deixa a desejar. Além dos já citados Kevin Spacey, Robin Wright e Michael Kelly, também atuam na série: Kate Mara, Michel Gill, Constance Zimmer, Reg E. Cathey, entre outros. A construção dos personagens e a interpretação dos atores é vista como um dos segredos do sucesso de House of Cards. A profundidade de sentimentos e características marcantes dos personagens ajuda a criar um elo com o espectador, que se vê representado por alguém da série.

 

A professora Glória conta que os personagens demonstram uma condição psicológica muito forte, fato que os torna mais verossímeis. “Os personagens foram construídos de uma maneira extremamente sedutora”, afirma. “Claire pode exibir uma beleza física mais interessante do que a dele (Frank), mas ele também é um cara que tem um charme do caramba. Então, os gestos, o modo de andar, a expressão física deles, tudo isso vai atraindo as pessoas.”

A série está em sua quarta temporada e deve contar com pelo menos mais uma, a estrear em 2017. Cada episódio dura em média 55 minutos e mostra, através de um enredo fictício, detalhes e bastidores do cenário político dos Estados Unidos.

Netflix, em vez de divulgar, se empenha para manter em segredo os números de audiência dos títulos de seu catálogo. No entanto, se o número de curtidas na página oficial da série no Facebook servir como parâmetro, podemos afirmar que, com quase 3 milhões de curtidas, House of Cards é um castelo de cartas enorme.

Referências:

-Professora Gloria T. Negrelos;

-Blog House of Cards Brasil (http://houseofcardsbrasil.com/)

e páginas oficiais da série nas redes sociais.

Foto: Netflix/Divulgação

Foto: Netflix/Divulgação

Foto: Netflix/Divulgação

bottom of page