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Ditadura (Civil-) Militar

Fase mais controversa da História recente do Brasil deixou sequelas em alguns e saudades em outros

Matéria publicada originalmente em novembro de 2016 na revista Verbatômico

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Foto: Perseguição policial durante manifestação na Av. Rio Branco em 1964

Contexto Histórico

Entre os anos de 1947 e 1991 o mundo esteve sob grande tensão devido à Guerra Fria. Durante esse período, duas enormes potências mundiais (Estados Unidos, defendendo o capitalismo, e União Soviética, defendendo o comunismo) disputavam influência internacional nos âmbitos ideológico, econômico, político e militar. O adjetivo “fria” se deve ao fato de que essas duas nações não entraram em conflito bélico diretamente, uma contra a outra. No entanto, a intervenção delas em outros territórios acarretou vários choques e embates, muitas vezes violentos, como a Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnã.

 

Na América Latina, uma das situações mais emblemáticas do período foi a Revolução Cubana. O episódio derrubou o ditador Fulgencio Batista (apoiado pelos EUA) e levou ao poder o revolucionário Fidel Castro. As reformas promovidas pelo novo governo cubano, como a nacionalização dos bancos, por exemplo, começaram a incomodar os Estados Unidos. Após uma série de medidas que contrariavam os interesses norte-americanos, Washington rompeu as relações com Havana. A partir de então, a proximidade ideológica entre o país caribenho e a União Soviética facilitou a abertura de relações entre Cuba e o eixo comunista. Logo Cuba se tornou a principal aliada da União Soviética em continente americano e uma das maiores ameaças à hegemonia dos Estados Unidos na América Latina.

 

O comunismo vinha conquistando muitos adeptos nas Américas e isso preocupava Washington. Temendo que novas revoluções, inspiradas na cubana, tomassem corpo na América Latina, os Estados Unidos passaram então a estimular e apoiar golpes militares de inclinação direitista nos países vizinhos a fim de assegurar sua supremacia ideológica e econômica na região.

 

Na América do Sul, o primeiro país a enfrentar um regime militar durante a Guerra Fria foi o Brasil, em 1964. Na sequência, Chile (em 1973) e Argentina (em 1976) também sofreram golpes militares. O governo estadunidense patrocinou e participou desses três casos, e também de outras ações da mesma espécie enfrentadas em alguns países da América Central.
                                                                     

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Foto: Marcha da Família com Deus pela Liberdade

Dia da Mentira

Uma das muitas controvérsias sobre a ditadura militar do Brasil já começa pela data de sua instauração. Defensores do regime alegam que o período se iniciou no dia 31 de março, porém tal afirmação não se sustenta. O apego a essa data parece ser uma tentativa de negar que o golpe tenha triunfado no dia da mentira.

 

As tropas militares contrárias ao governo (embora minoritários, havia setores das forças armadas que apoiavam o presidente João Goulart) começaram a marchar na madrugada do dia 31 de março, no entanto a marca da vitória do golpe se deu em primeiro de abril de 1964, quando, acuado pelas tropas hostis ao seu governo, o presidente João Goulart precisou abandonar a Capital rumo a Porto Alegre. Na sequência ele partiria para o exílio no Uruguai. A fuga do presidente de Brasília consolidou o triunfo do golpe.

 

Na madrugada do dia 2 de abril, o senador Auro Moura de Andrade anunciou no Congresso Nacional: “Declaro vaga a presidência da República”. Ciente de que a manobra visava transmitir o poder aos militares, o então deputado Tancredo Neves retrucou: “Canalha! Canalha! Canalha! ”. Na ocasião foi empossado o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, como presidente da República.

 

No segundo dia de abril de 1964 movimentos civis opositores a Jango foram às ruas e realizaram a Marcha da Vitória, no Rio de Janeiro. Um dos organizadores da manifestação foi o jornalista e, na época, governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda – o mesmo que se opôs ferozmente a Getúlio Vargas e também influenciou na queda daquele governo. No mesmo dia, viaturas militares tomavam as principais ruas do país e reprimiam protestos a favor de João Goulart. Sedes de partidos políticos, sindicatos e outras bases de grupos pró-Jango foram invadidas e depredadas. A sede da União Nacional dos Estudantes (UNE), por exemplo, foi incendiada.

 

A Marcha da Vitória foi oriunda da famosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que se tratava de uma série de protestos organizados por setores conservadores da sociedade que defendiam a deposição do presidente João Goulart e o banimento da “ameaça comunista”. Algumas semanas antes do golpe, estima-se que entre 500 mil e 800 mil pessoas foram às ruas em São Paulo participar de uma das Marchas da Família. Em seus cartazes, lia-se: “Vermelho bom, só batom”, “Verde Amarelo, sem foice e sem martelo”, entre outras mensagens de cunho anticomunista.

 

Carlos Lacerda, ferrenho crítico de Jango e um dos organizadores da Marcha da Vitória, mais tarde, se desiludiria com o golpe que ele havia apoiado e acabaria encabeçando um movimento de oposição à ditadura. Em 1966, dois anos após o golpe, Lacerda aliou-se a dois de seus antigos rivais e ex-presidentes: um deles, o próprio João Goulart e, o outro, Juscelino Kubitschek. Foi lançado então o movimento de resistência Frente Ampla. No entanto, Lacerda, o único do trio que atuava no País (Goulart e Kubitschek estavam exilados), acabou sendo preso em 1968 e o movimento não vingou.

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Foto: Documentário Cidadão Boilesen

Ditadura civil-militar

 

Embora seja conveniente se referir ao regime como ditadura militar, uma vez que os presidentes e boa parte dos ministros do período eram militares, é necessário ressaltar que muitos civis não só apoiaram, como participaram e tiraram proveito da intervenção.

 

A participação civil na ditadura é exposta no documentário Cidadão Boilesen, de Chaim Litewski. O documentário expõe a trajetória de Henning Boilesen, administrador de empresas dinamarquês, radicado no Brasil, que chegou a ser presidente da Ultragaz. Segundo denúncias apresentadas no documentário, Boilesen patrocinou a Operação Bandeirantes (OBAN), órgão da ditadura criado para perseguir e neutralizar movimentos esquerdistas. Além de financiar a OBAN, o documentário apresenta acusações de que Boilesen fez questão de comparecer a sessões de tortura.

 

Marcado por colaborar com os militares, Boilesen foi assassinado por militantes de extrema-esquerda. 

Os Militares no Poder

O deputado Ranieri Mazzilli passou 14 dias como Presidente da República. No dia 15 de abril, o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco foi empossado. Era o início de um dos mais controversos períodos políticos da História do Brasil.

Dentro dos padrões das Forças Armadas, Castelo Branco era considerado um militar moderado. O marechal assumiu alegando que a intervenção seria breve e teria caráter corretivo. As promessas de breve retorno à democracia não foram cumpridas e Castelo Branco logo passou a perseguir opositores. Associações civis foram fechadas, greves foram proibidas, sindicatos foram bloqueados, todos os partidos políticos existentes até então foram dissolvidos e diversos políticos tiveram seus direitos cassados – Juscelino Kubitschek foi um deles. Durante o governo de Castelo Branco foi implementado o bipartidarismo, ou seja, apenas dois partidos políticos podiam atuar regularmente. Os partidos lançados com permissão a trabalhar eram a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que abrigava os apoiadores do governo militar, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), encabeçado pelos opositores.

Castelo Branco implementou reformas em diversas frentes ao assumir o cargo, como na economia, no sistema tributário e, é claro, na repressão a movimentos subversivos. Contudo, outros militares que compunham a cúpula do regime, consideravam branda a postura do presidente Castelo Branco.

Um fato que marcou profundamente o governo do marechal foi o atentado no Aeroporto Internacional dos Guararapes, em Recife. Em julho de 1966, uma bomba explodiu no saguão do aeroporto, culminando na morte de duas pessoas e ferindo outras 14. O alvo do ataque era o marechal e candidato à sucessão presidencial Artur da Costa e Silva, porém, devido a um imprevisto, o general não estava em Recife naquele momento e escapou ileso do atentado. Após o ataque no Aeroporto dos Guararapes, a perseguição a grupos políticos de oposição ao regime foi intensificada. A justificativa era a necessidade de combater terroristas e guerrilheiros. No entanto, no rol de suspeitos entravam quaisquer membros de grupos esquerdistas, mesmo que não estivessem envolvidos com guerrilha ou atos violentos. Sobre a responsabilidade do atentado no Aeroporto de Recife, o governo acusou, prendeu e torturou o ex-deputado federal Ricardo Zarattini e o professor Edinaldo Miranda. O primeiro era militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, já o segundo era apenas um simpatizante de movimentos esquerdistas, porém não era engajado. Mesmo sob tortura, ambos negaram qualquer envolvimento com o atentado. Em 2013, a Comissão da Verdade apresentou documentos oficiais que demonstram que as investigações do caso eram contraditórias, inconclusivas e que jamais foi comprovada a responsabilidade de Zarattini e Miranda no ataque.

O alvo do atentado, o marechal Artur da Costa e Silva, militar considerado linha dura, foi eleito pelo Congresso e assumiu a presidência em 1967. Era o início dos chamados Anos de Chumbo, período em que a repressão se intensificou e deixou sequelas em políticos, ativistas e inocentes que eram presos apenas por serem suspeitos.


                                                                     

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Foto: divulgação do livro Depois da Rua Tutoia

Depois da Rua Tutoia

Na literatura nacional, poucos livros abordam o período da ditadura militar de forma fictícia. Para quebrar esse paradigma, o jornalista e escritor Eduardo Reina lançou em 2016 o romance Depois da Rua Tutoia. O nome do livro é uma referência à Rua Tutoia, na região central de São Paulo, endereço do DOI-CODI paulista. O local, destacado para ser um órgão de inteligência e repressão do governo, era famoso palco de torturas, sendo inclusive o local onde o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado.

 

Com uma narrativa ágil e uma trama cativante, Depois da Rua Tutoia tem uma premissa muito pouco abordada quando se trata do regime militar brasileiro: o sequestro de bebês por parte dos agentes de repressão. A protagonista do livro é Verônica, uma jovem batalhadora e ansiosa por respostas. Criada no seio de uma família rica e tradicional de São Paulo, Verônica sente que

algo em sua história não se encaixa e arrisca tudo para descobrir a verdade e encontrar um destino que a satisfaça. Além da jovem, vários outros personagens chamam a atenção do leitor, como o casal de militantes Adalberto e Margareth, que atuam numa célula de resistência na cidade de Mauá, no ABC Paulista. Também se destaca o empresário Theophilo M. Guerra Barbosa, personagem que representa a maneira como boa parte da burguesia usufruiu da ditadura.

À reportagem da Verbatômico, o autor Eduardo Reina conta que sempre teve o objetivo de escrever livros que retratassem o cotidiano da gente. Ele elogia Nelson Rodrigues por escrever sobre detalhes do dia-a-dia das pessoas nos anos 40,50, 60. “Isso [retratar o cotidiano do povo] é sensacional porque a gente precisa deixar isso registrado”, comenta Eduardo. “Daqui 100 os caras vão querer saber ‘em 2010, em 2000, como que era o negócio? ’ e acho que pouca gente se atenta para isso, a não ser cronistas de jornal, mas hoje em dia até cronista de jornal quase não existe”.

A partir desse desejo de registrar o cotidiano, Eduardo escreveu Depois da Rua Tutoia. O mote da obra envolve o período da ditadura militar, mas a narração avança até os dias atuais e retrata com originalidade a vida durante os Anos de Chumbo e chegando até o presente. Eduardo conta que vinha pesquisando sobre sequestros de bebês realizados por agentes da ditadura na Argentina. “Lá na Argentina foram mais ou menos 500 bebês sequestrados [por agentes de repressão] e aí eu pensei: ‘será que no Brasil não teve?’ ”, explica ele.

É muito provável que sequestros de bebês, filhos de militantes contrários à ditadura, também tenham acontecido no Brasil, porém não existem muitos casos confirmados. Eduardo Reina conta que após a publicação de ‘Depois da Rua Tutoia’, uma moça entrou em contato com ele, pois se identificou com a história de uma das personagens. Tal qual se passa na ficção, essa moça também é filha de militantes e, tirada de seus pais, acabou sendo criada por uma outra família. Essa mulher só descobriu a verdade após ver uma fotografia no jornal que mostrava a família de um guerrilheiro e se achou muito parecida com aquelas pessoas. “Depois que eu lancei o livro tive contato com outras pessoas [com histórias parecidas] em processo de investigação. Pode ser que aconteça e que apareça mais gente. Porque no Brasil não tem nenhuma história dessas registrada, oficial. Tem outros casos tramitando na Justiça. Então é um trabalho de formiguinha, de investigação”, completa o autor.

Eduardo Reina conta que cursou Jornalismo durante o período final da ditadura e fala sobre o medo da possibilidade de que houvesse um espião entre os grupos da faculdade para denunciar eventuais focos de oposição ao regime. “Na faculdade, eu estava fazendo uma pesquisa sobre Vladimir Herzog e fui conversar com um professor que foi preso e torturado. Hoje ele consegue falar um pouco sobre isso, mas naquela época... eu falei com ele da minha pesquisa sobre o Herzog e perguntei como que foi a experiência dele. O homem abaixou a cabeça e tremia, não conseguia falar, primeiro porque tinha sido muito recente o que ele tinha sofrido e depois imagina como ele ficou marcado psicologicamente”, conta Eduardo Reina.

Anos de Chumbo

 

Em resposta ao deputado Márcio Moreira Alves, membro do MDB, que acusou o Exército de ser um “refúgio de torturadores”, o presidente Costa e Silva baixou o famigerado AI-5. O deputado Moreira Alves havia feito um discurso sugerindo que a população boicotasse, em protesto à ditadura, as comemorações de 7 de setembro. Moreira Alves também exaltou, em sua fala, os militares de baixa patente que manifestavam contrariedade à ditadura. “Todos reconhecem que a maioria das Forças Armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão”, disse o deputado, logo no início de seu discurso. “Vem aí o 7 de Setembro. As cúpulas militaristas procuram explorar o sentimento de patriotismo do povo e pedirão aos colégios que desfilem juntos com os algozes dos estudantes (…) Que cada um boicote esse desfile”, pediu ele.

 

Em razão do discurso de Moreira Alves, o então ministro da Justiça pediu ao Congresso autorização para processar o deputado (à época era necessário que a Câmara dos Deputados consentisse com processos contra algum de seus membros). O processo não foi autorizado e como represália o governo lançou o AI-5, que garantia ao presidente poderes quase absolutos. Entre outras medidas, o ato permitia que o governo decretasse recesso no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais. O AI-5 também intensificou a censura, determinou toques de recolher, proibiu manifestações políticas, etc. O decreto era tão tirânico que até membros da ARENA se manifestaram contra ele. Um dia após a instituição do AI-5, o Jornal do Brasil publicou a seguinte meteorologia: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos[...]”.

 

A Câmara dos Deputados foi fechada. Márcio Moreira Alves, ameaçado de morte, partiu para o exílio e só retornou ao Brasil após a Lei da Anistia. Era o princípio dos Anos de Chumbo, período em que a repressão foi intensificada e denúncias de torturas e execuções realizadas por agentes do estado aumentaram substancialmente.

 

Por ironia, foi durante os Anos de Chumbo que o país passou por um suposto “Milagre Econômico”. Naquele momento o crescimento do PIB brasileiro saltou de 9,8% ao ano em 1968 para 14% ao ano em 1973, de acordo com fontes do governo da época. Elio Gaspari, em seu livro A Ditadura Escancarada afirma: “O Milagre [Econômico] Brasileiro e os Anos de Chumbo foram simultâneos. Ambos reais, coexistiam negando-se. Passados mais de trinta anos, continuam negando-se. Quem acha que houve um, não acredita (ou não gosta de admitir) que houve o outro”.

 

Em agosto de 1969, Costa e Silva teve um derrame (faleceu em decorrência dele meses depois) e não pode mais exercer a presidência. Uma vez que seu vice era civil, uma junta militar provisória foi formada para manter o poder até que um novo presidente fosse escolhido. O favorito era o general Emílio Garrastazu Médici. O general exigiu que para tomar posse o Congresso Nacional deveria ser reaberto. Foi atendido e em outubro de 1969 sua “eleição” para presidente foi sacramentada em uma sessão conjunta no Congresso. Médici prometera restabelecer a democracia até o fim de sua gestão, fato que não aconteceu. Durante o governo Médici a repressão violenta perdurou e os Anos de Chumbo também.

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Foto: Museu da Resistência

Repressão

Imagine que sua ideologia é contrária à do atual governo. Imagine que você é contra o governo. E agora imagine ser preso, pressionado e torturado por agentes desse governo apenas por ser contra o regime. O aposentado Horácio Salas Molina, 75 anos, é um personagem real que viveu (e sofreu) com a repressão dos militares por ser opositor ao regime e irmão de Maria Salas, uma das dirigentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

 

Em entrevista para nossa reportagem, ele conta alguns dos momentos pelos quais ele passou, quando preso no DOI-CODI, da Rua Tutoia. “Lugar de tortura”, começa o senhor Horácio, lembrando do local. “Tinha um coronel magrelinho, vivia com um chicote na mão, todo momento querendo bater, achando que eu mentia. Mas falando a verdade ou mentira, apanhava a mesma coisa”, completa.

Horácio, que foi preso junto com seu irmão, passou quatro meses na carceragem. Ele conta que os militares queriam que ele entregasse a localização de sua irmã e de outros dirigentes do PCB. “Eu disse pra eles: ‘se vocês viajarem pra União Soviética talvez vocês peguem ela’, era a melhor resposta que eu podia dar”, conta o aposentado. Ele explica que não estava tentando enganar seus interrogadores, sua irmã e seu o cunhado estavam realmente refugiados em Moscou naquele período e passaram 11 anos lá.

Um dos episódios que mais marcou o senhor Horácio no DOI-CODI foi o dia em que ele foi convocado por um carcereiro para ajudar a carregar um preso de volta para a cela. “Era um camarada alto e pesadão. Ele tava inchado de tanto sofrer choques elétricos. Da cela a gente tinha ouvido os berros dele”, conta Horácio. “Eu segurava ele de um lado e o carcereiro do outro. Mandaram ele justamente pra minha cela. Parecia morto”, conclui. O colega de cela citado pelo senhor Horácio era o jornalista e deputado Marco Antônio Coelho, falecido em 2015. A título de curiosidade: Marco Antônio Coelho publicou em 2011 um livro “Rio Doce, a espantosa evolução de um Vale”, coincidentemente, morreu poucos dias após o desastre de Mariana que devastou a região que ele defendeu em seu livro.

 

Horácio relembra o dia em que foi solto: “Me levaram pra uma sala, eu já estava cansado e falei ‘se eu minto, eu apanho, se eu falo a verdade, eu apanho do mesmo jeito! Por que vocês não me matam de uma vez? Vocês são covardes! ’. Aí eu pensei agora eu vou morrer, não sei por que, mas nesse dia me soltaram. ”

 

A irmã e o cunhado do senhor Horácio só retornaram ao Brasil após o fim da ditadura. “Em 85 os quartéis já estavam se retirando, aí eu recebi um recado de amigos que receberam um telefonema do meu cunhado, perguntando como estava a situação aqui. Eu mandei responder que eles já podiam voltar que não tinha mais problemas. Mas esses anos foram duros”, conta ele.

Redemocratização

Completando a lista de presidentes no período da ditadura estão o general Ernesto Beckmann Geisel e o general João Baptista de Oliveira Figueiredo. Esses dois nomes ficaram marcados por darem início a redemocratização do País, embora ela tenha sido gradual, conturbada e bastante lenta.

 

Geisel assumiu a presidência em março de 1974. Os Anos de Chumbo perderam força durante seu mandato, no entanto as perseguições, torturas e execuções, embora menos frequentes, continuavam. Concomitantemente com o enfraquecimento dos Anos de Chumbos, o Milagre Econômico também foi dando adeus. A inflação galopante assolou o governo de Geisel e escancarou o declínio do regime. O período também foi marcado por desentendimentos e cisões na cúpula das Forças Armadas.

 

A morte do jornalista Vladimir Herzog no DOI-CODI escancarou as execuções clandestinas que os agentes de repressão promoviam nos porões de seus prédios. Embora houve uma tentativa de relativizar a morte do jornalista, a desculpa não colou e Geisel se viu obrigado a exonerar o general Ednardo D’Ávila Mello, responsável pelo DOI-CODI no momento da prisão e morte de Herzog.

 

Geisel encontrou resistência de seus aliados por se dedicar à abertura política. A exoneração de seu ministro do Exército, o general linha dura Sílvio Frota, marcou seu empenho na retirada gradual da ditadura. Porém, é necessário frisar que os militares estavam se retirando devido às inúmeras crises pelas quais o Brasil estava enfrentando . Além das discórdias políticas internas e da crise financeira, o governo enfrentava grande descontentamento popular. Se não bastasse tudo isso, a eleição do presidente Jimmy Carter, em 1977, nos Estados Unidos também foi uma derrota para o regime. Ao contrário de seus antecessores, Jimmy Carter se empenhou em influenciar processos de aberturas democráticas na América Latina. Era o fim do financiamento americano das ditaduras militares latinas.

 

Para dar continuidade em seu plano de abertura democrática, Geisel colocou em seu lugar, em 1979, o general João Figueiredo, o último militar a governar o Brasil. O governo tentou colar em Figueiredo uma figura popular. Deram ao general o apelido de “João do Povo”. Não foi um apelido muito acertado. Em uma entrevista, um repórter perguntou a Figueiredo se ele gostava do cheiro do povo, ao que o presidente respondeu: “O cheiro dos cavalos é melhor ”. A personalidade de Figueiredo era muito polêmica. Certa vez, indagado sobre o que ele pensava de quem era contra a abertura política ele respondeu: “Se alguém for contra, eu prendo e arrebento”.

 

A redemocratização perturbava a extrema-direita. Se até então os terroristas eram os militantes de esquerda, quando a abertura política se mostrou irreversível foram setores direitistas e militares “linha dura” que passaram a cometer atentados. Bancas de jornais que se propunham a comercializar periódicos da chamada “imprensa alternativa” eram incendiadas. Bombas eram explodidas em locais de concentração de militantes contrários ao regime militar. O mais famoso ataque planejado pelos terroristas de direita foi o frustrado Atentado do Riocentro.

 

No dia 30 de abril de 1981, um show realizado no centro de convenções Riocentro, em comemoração ao Dia do Trabalhador, foi manchado por uma tentativa malsucedida de atentado. Dois militares tentariam plantar bombas nos pavilhões do Riocentro, porém uma das bombas explodiu dentro do carro em que estavam os terroristas, ocasionando a morte de um deles e ferindo gravemente o outro. Detalhe: o público e os artistas do show só se deram conta da tentativa de ataque após o término do espetáculo, que ocorreu normalmente. Uma outra bomba ainda foi detonada no pátio da miniestação elétrica que abastecia o centro de convenções, no entanto, a explosão não chegou a danificar os equipamentos e a energia elétrica não foi interrompida.

 

O governo acusou militantes de esquerda pelas explosões, contudo, as acusações não se sustentavam devido a inúmeras contradições que os acusadores não conseguiam explicar, como por exemplo: o que os militares faziam com o carro particular de um deles no centro de convenções e com placas falsas? Também não explicaram por que os militares portavam granadas (que não explodiram). Hoje a conclusão do caso aponta que realmente foi um grupo de militares insatisfeitos com a abertura política dirigida por João Figueiredo que tramou o ataque.

 

Exigindo voz no cenário político nacional, a população foi às ruas se juntar ao movimento Diretas Já. Os protestos, pedindo eleições diretas, ocorreram em diversas cidades, começando por Recife, em seguida Goiânia, Curitiba e São Paulo. Houve repressão e o presidente Figueiredo condenou os protestos. De qualquer forma, as manifestações ganharam ainda mais corpo, até que dia 25 de janeiro de 1984, 1 milhão e meio de pessoas foram ao Vale do Anhangabaú em São Paulo, em pleno aniversário da cidade e demonstraram apoio ao movimento Diretas Já.

 

Em meio a várias divergências internas e o clamor popular, a redemocratização foi sacramentada com a eleição, por meio de um colégio eleitoral, de Tancredo Neves, o mesmo que duas décadas antes havia chamado o presidente da Câmara de “canalha” por abrir caminho para o golpe militar. O candidato apoiado pelos militares, na época, era Paulo Maluf, que recebeu 180 votos – Tancredo obteve 480 – do colégio eleitoral.

 

Tancredo Neves adoeceu gravemente e não pôde assumir a presidência. Portanto, quem herdou o cargo foi José Sarney, vice na chapa de Tancredo. Vale destacar aqui uma curiosidade: embora na chapa oposicionista, José Sarney já havia recebido o apoio, anteriormente, de Ernesto Geisel, com quem se reuniu algumas vezes. Porém as alianças, acordos e amizades de Sarney é assunto para outra matéria.

 

Cabe destacar que João Figueiredo se recusou a participar do simbólico ato de passar a faixa presidencial, uma vez que ele considerava Sarney um impostor. Antes da morte de Tancredo Neves, Figueiredo em uma entrevista para o repórter Alexandre Garcia deu mais uma declaração polêmica: “Bom, o povo [...] está apoiando o Tancredo. Então, desejo que eles tenham razão, que o doutor Tancredo consiga fazer um bom governo. E que me esqueçam! ”. Tancredo não se recuperou de sua doença, seu vice assumiu a presidência e Tancredo Neves morreu um mês após o fim da ditadura militar.

 

Sarney tomou posse em 15 de março de 1985 e ficou no cargo até 1990. A primeira eleição presidencial direta, após o fim da ditadura, foi realizada em 1989 e Fernando Collor de Mello sagrou-se o primeiro presidente eleito pela população após a redemocratização.

 

Os meandros da política brasileira raramente foram suaves. Nossa nova democracia é jovem, falha e demanda evolução. No entanto, é preocupante que tantos cidadãos, desinformados ou mal-intencionados, busquem soluções antiquadas, retrógradas e reacionárias.

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