Espantalho
Conto escrito em maio de 2011
1
Mariana ficou paralisada quando atendeu o celular e ouviu aquela voz.
− Até quando você vai fugir de mim, vagabunda? – Dissera-lhe seu ex-marido.
Não conseguiu responder.
Podia mudar o telefone, o endereço, o visual ou o que quer que fosse, Jean sempre a encontrava. Mariana era ameaçada por ele antes mesmo do divórcio e agora sentia que o ex-marido era realmente capaz de cumprir as ameaças. A justiça o havia proibido de se aproximar mais de cem metros dela, mas isso não era garantia alguma de segurança.
− Não adianta ficar calada – seguiu Jean do outro lado da linha. – Já sei que você tá morando com um namoradinho novo. Sei em que cidade você tá agora e eu vou pegar vocês dois. O carinha primeiro, depois você.
Mariana continuou calada. Queria desligar o aparelho, mas estava assustada demais até para isso.
− Devia ter me valorizado enquanto pôde, agora todo o amor que eu sentia por você virou ódio e logo estarei aí em São Marcos pra te pegar.
E desligou.
2
Tudo que o monstro sentia era ódio.
A vítima morria aos poucos. O assassino supunha que o desgraçado era inteligente o bastante para saber que não sairia daquele quarto com vida. Marcelo, a vítima, estava amarrado em sua própria cama com lençóis e cintos. Quando acordara e percebera o que estava acontecendo, havia berrado feito um porco no abate, depois tentara argumentar com o invasor, mas tudo o que o intruso dizia era: “Vai me contar?”. Marcelo enfraquecia lentamente. Seu sangue gotejava através do cateter que o monstro havia enfiado em seu braço e pingava no chão. Àquela altura a poça vermelha no chão já chegava às botas do assassino.
− Vai me contar? – perguntou o monstro com sua voz grave, pela enésima vez.
O assassino queria respostas e vingança. Estava vestido com trajes de psicopata de filme de terror. Já que o fizeram sentir tanto medo na adolescência, ele agora devolvia o pavor, e aquelas roupas ajudavam um bocado. Passava da meia noite quando havia invadido o casarão de Marcelo em sua fazenda na cidade de São Marcos, interior de São Paulo. Ágil, chegou no quarto enquanto a vítima dormia. Com destreza e em silêncio, o assassino amarrara o desgraçado, que só foi acordar quando o cateter era introduzido em sua veia. Os vizinhos mais próximos ficavam a uma distância grande o suficiente para não ouvirem nenhum grito. Os únicos que teriam condição de escutar Marcelo eram o casal de caseiros e seu filho. E estavam os três mortos na casinha nos fundos da fazenda, estrangulados.
− Cara, mais uma vez, não sei do que você tá falando – argumentou Marcelo, fraco.
O assassino sorriu por debaixo da máscara de Michael Myers, vilão da série de filmes Halloween. Já havia feito a mesma pergunta várias vezes, mas Marcelo sempre tentava desconversar.
− Vai me contar? – repetiu o assassino.
− Quem é você? – perguntou Marcelo, finalmente.
Marcelo estava pálido. Poderia desmaiar a qualquer momento e logo morreria caso o cateter não fosse removido.
− Você sabe quem sou eu. O Espantalho. Vai me contar agora?
Marcelo engoliu em seco ao ouvir o nome Espantalho. Contudo o assassino tinha convicção de que sua vítima já sabia de sua verdadeira identidade desde que o avistara introduzindo uma agulha em seu braço.
− Você não vai me deixar viver – concluiu Marcelo.
− Claro que não. Mas posso agilizar o processo.
− Você quer que eu te diga onde o Dênis está. – Não foi uma pergunta.
− Você é um cara esperto.
− Não vai acreditar se eu disser que ele está morto – falou Marcelo.
− Nós dois sabemos quão vivo ele está.
− Grande Espantalho, sempre descobre as coisas. Realmente ele está vivo, mas não faço ideia de onde ele esteja.
O Espantalho inclinou a cabeça para os lados, fazendo o pescoço estalar.
− Não sabe? – perguntou o Espantalho, incrédulo.
− Depois de dez anos, nos encontramos novamente e é assim que você me cumprimenta! – falou Marcelo, irônico.
Mesmo ante a própria morte, Marcelo não abandonou seu sarcasmo. O vagabundo mimado pela avó, que se tornou um dos maiores traficantes da cidade, não perderia seu deboche nem no inferno. Aquele homem que perdia sangue lentamente foi um dos responsáveis por transformar um estudante asmático num psicopata, num monstro frio como o gelo.
− Passei dez anos arquitetando minha vingança, seguindo seu rastro pra encontrar meu verdadeiro inimigo, e você achou que eu ia te mandar flores?
Marcelo riu e em seguida desfaleceu. O monstro bufou em lamento. Gostaria de ter usado de sua especialidade para matar Marcelo: o estrangulamento. Mas fez a opção pelo cateter para treinar uma nova maneira de interrogatório, mais suave. Talvez se o tivesse torturado bruscamente teria obtido melhores resultados. Mas agora era tarde para lamentar. Marcelo ainda estava vivo, mas trazê-lo de volta a consciência seria trabalhoso demais e ele estaria muito débil para contar qualquer coisa. Então, que morresse daquela maneira mesmo. O Espantalho ainda tinha outros meios para chegar ao fim.
3
Era mais um final de tarde fria em São Marcos. Selton, largado no sofá da sala, tomava café e assistia ao noticiário da cidade na televisão. Era escritor de romances policiais e aquele tipo de programa era uma fonte de inspiração. Se bem que sua própria vida já daria um belo livro e ele planejava escrever sobre si mesmo quando estivesse velho. Mas, obviamente, Selton não podia prever que os próximos acontecimentos em sua rotina poderiam lhe render valiosos capítulos em sua futura autobiografia. Isso é, se ele sobrevivesse a tudo aquilo. Ironicamente, aquele noticiário de TV, que tanto lhe rendia em inspiração, acabaria por envolvê-lo numa trama.
O repórter, com sua expressão dura feito pedra, estava parado na entrada de uma fazenda da cidade.
− O crime que intriga as autoridades aconteceu nessa propriedade. Um dos filhos dos caseiros dessa fazenda tentou entrar em contato com os pais por telefone. Como ninguém respondeu, ele decidiu ligar para o patrão de seus pais, que também não atendeu. Então o rapaz veio até a fazenda e encontrou os pais e o irmão estrangulados. Chamou a polícia que terminou por descobrir que havia mais um cadáver na propriedade.
As imagens que vieram a seguir na TV foram de funcionários do IML carregando corpos de dentro da fazenda para o veículo do instituto. Enquanto isso o mesmo repórter seguia a narração do crime:
− A outra pessoa assassinada é Marcelo Dutra Reis de 28 anos. Que ao contrário das outras três vítimas teve uma morte diferenciada, seu sangue foi drenado através de um cateter no braço.
E eis que surgiu na tela a foto de um velho colega de Selton. E daí em diante, ele não precisou mais prestar atenção nas palavras do repórter. Já sabia do que precisava saber. Quatro pessoas mortas, três delas estranguladas. Selton já sabia até de quem se tratava o assassino. O Espantalho dava suas caras novamente. O covarde que havia matado a melhor amiga. O maldito que havia matado o irmão de Selton. O psicopata que recebera o apelido de Espantalho e desapareceu depois de matar Dênis, o irmão de Selton, isso há 10 anos, estava de volta.
E foi com muito ódio que Selton se lembrou de um fato que se passou quando estava na escola.
4
Era meio-dia e pouco. O trio havia acabado de sair da escola. Dênis e Marcelo eram amigos inseparáveis e estavam no 3° ano do ensino médio. Selton ainda estava no primeiro. Os três estavam falando sobre garotas enquanto se dirigiam ao ponto de ônibus. Selton ria enquanto Marcelo zombava do “penteado íntimo” de uma menina que tinha ido pra cama com ele. Contudo, o riso de Selton se desfez quando ele viu Rafael, um garoto asmático e magricela da turma de seu irmão e de Marcelo, parado no ponto de ônibus. Rafael era o esquisitão da escola e não escapava de gozações diárias. Dênis e Marcelo não perdiam a oportunidade de zombarem dele. Selton reprovava essas ações, sentia que o irmão e o colega passavam dos limites. O adolescente mais jovem previu que um novo trote se iniciaria assim que Dênis e Marcelo avistassem seu alvo preferido. Por isso parou de rir. Chegou a pensar em sugerir que dessem meia-volta porque ele havia esquecido algo na sala, quis tentar impedir um novo ato de bullying, mas não teve tempo. Uma nova gozação estava para começar e mais uma vez Selton não seria capaz de impedir.
Quando Marcelo viu Rafael, seu sorriso se alargou. O esquisitão tirava a bombinha broncodilatadora do bolso. Uma súbita crise de asma parecia estar se aproximando do garoto. Selton achou aquele um péssimo momento para se iniciar uma piada, mas não era ele quem escolhia o momento da zoeira.
Marcelo correu na direção de Rafael e com um safanão, tomou a bombinha das mãos do garoto. Rafael se irritou imediatamente e começou a ficar vermelho.
− Segura essa aí, Dênis! – gritou Marcelo, arremessando a bombinha para o amigo.
Dênis agarrou o objeto, com um amplo sorriso de satisfação.
Rafael veio na direção de Selton e Dênis.
− Devolve meu remédio, por favor – pediu Rafael, estendendo a mão e fechando a cara.
− Devolve pro cara! – falou Selton, mas foi ignorado.
Dênis arremessou a bombinha de volta para Marcelo. O remédio passou por cima da cabeça do asmático e foi parar nas mãos de Marcelo. E Marcelo arremessou de volta para Dênis.
− Me devolve, porra! – disse o asmático, encarando Dênis com ódio.
− Pega leve, Espantalho.
Selton teve calafrios ao ouvir o irmão chamar Rafael pelo apelido.
Dênis jogou o remédio para Marcelo novamente. A brincadeira de bobinho estava fazendo Selton se sentir quase tão mal quanto a própria vítima.
− Sua vez, Selton! – gritou Marcelo.
− Não joga pro Selton, que ele vai devolver...
Já era tarde. Marcelo fez o movimento para arremessar, mas quando ouviu Dênis, tentou brecar o arremesso. Não conseguiu e a bombinha escapou de suas mãos, bateu no esquisitão e foi parar na rua. Em uma fração de segundos, a bombinha estava debaixo de um pneu de carro.
Quando viu seu remédio se espatifar embaixo do carro, Rafael pareceu ter um ataque. Curvou-se, levou as mãos ao peito, buscou ar, mas parecia estar se afogando.
− Puta merda! – exclamou Marcelo.
Dênis coçou a cabeça e subitamente gritou:
− Corre!
E começou a correr. Marcelo o seguiu. Selton ficou. Queria ajudar Rafael, mas não sabia como. O asmático deitou-se em posição fetal e agonizava tentando respirar. Era uma cena trágica e ao mesmo tempo bizarra. Selton estava sem reação.
Rafael provavelmente teria morrido não fosse por Patrícia. A garota, que futuramente seria a namorada de Dênis, correu para salvar aquele que seria seu algoz.
− Chama uma ambulância! – disse ela, passando por Selton.
Selton então resolveu mexer-se. Correu para o orelhão próximo ao ponto de ônibus e chamou uma ambulância. Quando se voltou para Rafael, viu Patrícia ajoelhada ao seu lado, pedindo para que ele respirasse como ela. Patrícia enchia os pulmões lentamente e o asmático a imitava. Ficaram assim até a ambulância chegar e resgatar Rafael.
5
Nada podia deixar Selton tão revoltado quanto a lembrança de Rafael. Depois daquele acidente, Patrícia, que estudava na mesma escola que eles, se tornou grande – e única – amiga de Rafael. Porém, um tempo depois começou a namorar Dênis.
Provavelmente por ciúmes e inconformismo de ver sua amiga namorando um inimigo, o asmático estrangulou a única pessoa que chegou a criar laços com ele na escola. Ao que tudo indicava, Patrícia foi a primeira vítima do Espantalho. Em seguida, todos os alunos que o perturbaram, um a um, foram estrangulados até a morte. Dênis não escapou, só que ao contrário dos outros, seu corpo nunca foi encontrado. Como Dênis era o mais odiado pelo assassino, Selton suspeitava que o seu corpo fora escondido num lugar especial. Não era agradável imaginar o que teria acontecido com seu irmão, mas ele não podia evitar supor que Dênis o havia sido trucidado e feito aos pedaços. Depois de sua sangrenta vingança, o Espantalho desapareceu. Nem a polícia, nem ninguém sabia de seu rastro. O que todos se perguntavam era como uma pessoa doente e fraca fora capaz de se transformar num assassino tão hábil. Muitos acreditavam que ele estava morto. Mas, pelo jeito, não.
Agora Selton estava preocupado. Marcelo, o único valentão remanescente, fora assassinado. E se o Espantalho resolvesse se vingar de Selton também? Sua preocupação se aguçou quando se lembrou de sua namorada. Mariana estava estranha ultimamente. Quando Selton perguntou se ela estava sendo ameaçada, ela negou, mas agora ele tinha motivos para acreditar que o Espantalho havia feito ligações para Mariana.
6
Algum tempo depois, Selton surpreendeu Mariana ao telefone. Ela não falava nada, mas seu semblante deixava claro que alguém do outro lado da linha a ameaçava.
− Com quem você tá falando? – perguntou Selton.
Mariana tinha lágrimas nos olhos. Largou o celular na cama e foi abraçar o namorado.
− Era o Jean – confessou ela.
− Aquele filho da puta de novo!
Jean era o ex-marido de Mariana. Não tinha nada a ver com o Espantalho. Porém aquilo significava que Selton tinha mais um inimigo para lhe dar dor de cabeça.
− Ele disse que vai matar nós dois – contou Mariana, visivelmente abalada.
− Vou estar esperando por ele.
Não sugeriu que fossem à polícia, até porque eles já haviam feito isso e não adiantou de nada. O que Selton queria mesmo era que um dos dois criminosos, Jean ou o Espantalho, o fizessem uma visita em seu apartamento. Seu revólver calibre 38 estaria aguardando.
7
Competência era o forte do Espantalho. Fazia cinco minutos que ele havia matado um cara e já estava pronto pra agir de novo. Em sua adolescência, após vários anos de humilhação, o Espantalho mergulhou secreta e firmemente nas artes marciais. As pessoas continuavam achando que ele não passava de um doente e nem imaginavam que ele estava se preparando para se tornar uma máquina. Na verdade, tudo que ele queria era poder se proteger, mas depois do que aconteceu com Patrícia, ele tomou o rumo da violência.
Discretamente, o Espantalho rondava o prédio onde Selton e sua namorada moravam. Segundo suas pesquisas, Dênis estava de volta ao país e provavelmente faria uma visita a seu amado irmão. Estavam há dez anos sem se ver, e o Espantalho tinha convicção que Dênis voltaria para encontrar Selton e também para eliminar o monstro que ele ajudara a criar. Só que o monstro já estava preparado para o reencontro e quando este momento chegasse Dênis teria uma morte dolorosa. Só depois de matar seu arqui-rival, Rafael poderia respirar em paz. E por falar em respirar, uma nova crise de asma se principiava.
O Espantalho levou o bucal da bombinha aos lábios, borrifou o remédio em sua boca e sugou a fumaça com vontade. Sua paciência, que ele havia controlado por dez anos, se esgotou ao tempo que seus brônquios se dilatavam.
8
Selton e Mariana estavam abraçados, balançando para frente e para trás, como que dançando, quando a campainha tocou. Não se pode falar no demônio que ele aparece, pensou Selton e correu para a gaveta do criado-mudo. Pegou a arma. Checou o tambor. 7 balas.
− Fica aqui – disse para Mariana.
− Cuidado, olha o que...
Selton já havia deixado o quarto. Seu coração batia acelerado. Puta coincidência! Mal ele desejara a visita de um dos desgraçados e a campainha tocou. Seria um dos dois? Selton escondeu a arma na cinta por baixo da blusa. Olhou pelo olho-mágico. Havia um garoto vestido de preto e com um capuz escondendo parte do rosto. Sua respiração acelerou. Não reconheceu a pessoa, mas boa gente não era. Selton não podia mentir para si mesmo, estava com medo. Mas também estava determinado. Quem seria aquele moleque que subiu ao seu apartamento sem ser anunciado pelo porteiro?
Abriu a porta, pronto para reagir caso o visitante fizesse qualquer movimento brusco. O garoto manteve-se parado, estático, fitando os olhos de Selton.
− Precisamos conversar – disse o garoto por fim.
Era Rafael! Como não o reconhecera de imediato? Sua voz estava diferente, mais calma, porém seu rosto era o mesmo! Rafael ainda tinha a mesma compleição magra, rosto jovial e sério. Para Selton foi como voltar dez anos no tempo e ver o garoto asmático... e assassino. O garoto apelidado de Espantalho.
− Por que esperou tanto pra vir me matar? – perguntou Selton.
− Não vim te matar.
Rafael parecia estar falando sério, mas como confiar num psicopata? Na verdade, Selton estava louco para puxar a arma e acabar com aquele desgraçado de uma vez por todas.
− Então por que veio? – perguntou Selton
− Vim passar minha história a limpo. Preciso te esclarecer umas coisas antes de cumprir meu verdadeiro objetivo.
− Não quero conversa com assassino.
− Não tá preocupado que seus vizinhos ouçam nossa conversa?
− Você acha que vou te convidar pra entrar?
− Você tem uma arma e quer me matar, caso não queira ter problemas com a polícia é melhor me matar dentro da sua casa, então você pode alegar que eu invadi seu apartamento e você apenas se defendeu.
− Como você sabe que eu tenho uma arma?
− Devia ter escondido ela na parte de trás da cintura.
Rafael apontou o volume na blusa de Selton.
− Tenho coisas importantes pra te contar. Me deixa entrar, você tá armado e eu não.
Rafael levantou sua blusa, mostrando estar desarmado.
− Não vou me importar em conversar com uma arma apontada pra minha cabeça, qualquer movimento que eu fizer você poder atirar – falou Rafael. – Mas preciso te contar o que realmente aconteceu com a Patrícia e com seu irmão.
Selton considerou a hipótese por um tempo. Não tinha muitas escolhas. Começou a andar pra trás.
− Entra e fecha a porta – disse para o psicopata.
Quando Rafael entrou e fechou a porta atrás, Selton sacou a arma e apontou para o assassino.
− Mariana, − gritou o escritor para sua namorada. − não saia do quarto, e se ouvir algum barulho, grita até não poder mais.
Rafael riu e Selton sentiu uma imensa vontade de puxar o gatilho.
− Mariana, Mariana – disse Rafael. − Vocês não vão acreditar quem eu acabei de encontrar lá fora.
− Do que você tá falando? – perguntou Selton.
− Conhece algum Jean?
Selton ficou mudo.
− Esse celular era dele. – Rafael tirou um celular do bolso da blusa.
Colocou o aparelho no chão e o fez deslizar até os pés de Selton.
− Dá uma olhada no papel de parede que eu acabei de colocar no celular dele.
Com cautela, Selton agachou-se, pegou o celular, apertou um botão qualquer e o visor se acendeu, revelando uma foto de um homem estrangulado. Desde então não ergueu mais a arma.
− Já dei muita dor de cabeça pra sua família então precisava me redimir – disse o assassino. – Tá aí. O ex-marido da Mariana nunca mais vai incomodar vocês. Não tem nem 15 minutos que eu o matei.
Selton não sabia o que falar, nem o que pensar, muito menos como agir diante daquilo. Eram muitas coincidências, muita sorte... ou azar.
− Como... Como... Impossível! Vo-você é um... – gaguejou Selton.
− Eu sempre descubro as coisas. Vim investigando você e sua namorada por um tempo. Descobri que ela era ameaçada por esse cara, depois descobri que ele estava na cidade, então resolvi fazer um favor.
Selton ficou mudo.
− Não precisa me agradecer – disse Rafael. − Bom, posso começar a falar o que eu vim pra falar?
Selton continuou calado.
− Não matei seu irmão, muito menos a Patrícia – disse o psicopata.
− Então quem matou os dois?
− Dênis matou a Patrícia, depois armou contra mim, pra parecer que eu o havia matado e fugiu do país. Ele está vivo até hoje.
Selton riu.
− Como você quer que eu acredite nisso?
− Não quero que acredite, mas você vai acreditar quando o vir. Dênis voltou a São Marcos. Ele quer me matar e te rever. É um filho da puta, mas te ama.
− E como você tem essa informação? – perguntou Selton.
− Venho passado todo esse tempo procurando por ele. Com empenho e a ajuda de pessoas influentes tudo fica mais fácil. Por incrível que pareça, Selton, eu tenho amigos.
Rafael respirou fundo e continuou.
− Eu realmente estava muito puto com o namoro da Patrícia e do Dênis, mas jamais eu faria algo ruim, pelo menos não com ela.
“Fiquei mais puto ainda quando a Paty me contou que o Dênis e o Marcelo estavam vendendo drogas. Nunca entendi como ela pôde se relacionar com criminosos da laia deles. A Patrícia ameaçou entregar os dois pra polícia se eles não parassem com aquilo. Eu tinha certeza que ia dar merda, mas não pude fazer nada. O Dênis sabia que se ela morresse eu seria um dos suspeitos, aliás, eu era o nerd humilhado, cheio de ódio e ciúmes. Então pra não correr o risco de ser denunciado pela namorada, o Dênis a estrangulou com um pedaço de arame e quando percebeu que acabaria entrando na lista de suspeitos também, fez questão de ser visto perto da minha casa e depois sumiu, pra que as testemunhas acabassem o relacionando comigo. Eu estava tão mal com a morte dela que realmente queria muito matá-lo, mas ele foi mais esperto. Sujou a camisa com seu próprio sangue, rasgou um pedaço dela e a jogou no meu quintal. Depois fugiu. A polícia começou a me pressionar e eu seria acusado pela morte dela e pelo desaparecimento dele. Então eu também fugi e comecei a planejar minha vingança. Como eu seria julgado por todos como um assassino, decidi que deveria fazer jus a minha fama de monstro. O que me restou foi realmente matar todos aqueles que me fizeram sofrer. Mas eu precisava deixar o Marcelo vivo, porque ele era um dos elos que poderiam me ajudar a achar o Dênis.”
Selton ficou atônito. Apesar de o relato fazer sentido, aquela história toda parecia mais com o roteiro de algum de seus livros.
− Não posso acreditar.
Ouvi-se um barulho do lado de fora do apartamento. Rafael virou-se para a entrada e notou que uma sombra entrava pela fresta embaixo da porta.
− Tem alguém escutando nossa conversa! – exclamou Rafael, irritado.
O Espantalho, precipitado, abriu a porta de supetão. Foi alvejado à queima-roupa. Quando seu corpo desabou, Selton pôde ver a imagem de um homem empunhando uma pistola cujo cano ainda exalava uma rala fumaça.
− Saudades, maninho!
FIM