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O Evangelho Segundo Jesus Cristo

Resenha escrita em maio de 2018

Foto: edição brasileira da Companhia das Letras

Resenha: O Evangelho Segundo Jesus Cristo

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Os primeiros dois parágrafos deste texto contém reflexões minhas com relação à fé, à religiosidade e ao ateísmo. Se quiser ir direto à resenha, pule para o terceiro parágrafo.

A fragilidade da razão humana é um tema delicado. Nós tendemos a fugir de qualquer argumento que possa enfraquecer nossas certezas. Dessa forma, é natural que a gente queira distância de quem pensa diferente. Preferimos recorrer à zona de conforto das nossas bolhas identitárias a descobrir uma nova realidade, uma nova verdade ou um novo ponto de vista. Trata-se de um desejo desesperado de buscar apenas vieses de confirmação. Agora, quando a assunto é fé essa histeria, esse medo do engano é multiplicado exponencialmente. São raras as pessoas que estão abertas a entender uma religiosidade que não condiga com aquela aprendida na infância. Ausência de religiosidade, então, é uma abominação. Tomando a mim mesmo como exemplo, hoje em dia, apesar de achar extramente improvável a existência de qualquer divindade e me considerar um ateu, prefiro dizer que sou agnóstico. O efeito causado nos meus interlocutores quando me assumo agnóstico é de confusão, imagino as pessoas se perguntando: “Que raio de religião é essa?”, e, no final, a conversa morre aí, com a outra pessoa com vergonha de mostrar que não conhece essa “religião”. Mas esse efeito é melhor do que quando me digo ateu, nesse caso, a reação das pessoas, geralmente, é de ofensa pessoal. Amizades muitas vezes acabam depois que esse detalhe é descoberto.

 

Mas por que toda essa reflexão antes de resenhar um livro? O fato, meus caros, é que o livro da vez é O Evangelho Segundo Jesus Cristo, do escritor português José Saramago, único autor de Língua Portuguesa a ganhar um prêmio Nobel. A obra em pauta, tão incrível e polêmica, rendeu ao autor um autoexílio nas Ilhas Canárias, onde ele viveu até sua morte em 2010. Saramago deixou seu país natal em represália ao governo português, que, por pressão de movimentos religiosos, retirou seu livro da lista de recomendações oficiais para um prêmio europeu. Pois bem, após ler a obra me peguei pensando no motivo pelos quais livros como O Evangelho Segundo Jesus Cristo ofende tanto os cristãos. Em uma entrevista, Saramago falou sobre a “censura” que recebe de muitos religiosos que afirmam que um autor declaradamente ateu “não tem o direito” de escrever sobre Jesus. Ao que o próprio escritor responde: “Tenho todo o direito do mundo. Eu estou empatado em valores cristãos. A pessoa que sou é nascida, criada e educada no cristianismo. Portanto tenho todo o direito de escrever sobre aquilo que fez de mim, em grande parte, a pessoa que sou”. Às vezes, a impressão que eu tenho é que os cristãos têm medo de que obras ateias difamem Deus. Acho isso de uma ingenuidade tremenda. Nenhum livro difama Deus tão bem quanto a própria Bíblia.

 

Agora, vamos ao livro. Com sua tradicional ironia, Saramago, em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, subverte passagens bíblicas sobre a vida do filho de Deus, dando a elas um tom mais verossimilhante, muitas vezes cômico e um pouco menos sobrenatural. Maria, por exemplo, não é virgem. Outra subversão, tão polêmica quanto a anterior, é o relacionamento carnal entre Jesus e Maria de Magdala. No geral, Jesus passa pelos episódios mais famosos citados nos evangelhos canônicos, porém, com alguns detalhes peculiares adicionados ou alterados por Saramago. Na obra, acompanhamos Jesus desde sua concepção até sua crucificação. Junto com o Messias, acompanhamos, também, as dificuldades e a vida tediosa de uma família comum de judeus do século I. Maria é uma dona de casa dedicada, José é um carpinteiro esforçado e confuso e Jesus é um garoto curioso, que, conforme vai amadurecendo, adquire uma rebeldia natural de adolescente. A família cresce com o passar do tempo, Jesus ganha irmãos e irmãs (de sangue), enterrando em uma cova ainda mais funda a castidade de Maria, tão apregoada pela Igreja Católica. Outros personagens, inéditos e complexos, permeiam a obra e enriquecem a história que envolve o filho de Deus.

 

No turbilhão de eventos que acomete a Galileia naquele período, vemos personagens bíblicos envolvidos em crises existenciais e de consciência. José, por exemplo, é atormentado por pesadelos frequentes por ter salvado apenas o próprio rebento na ocasião em que os soldados de Herodes foram ordenados a matar crianças pequenas em Belém. Mais adiante, Jesus herda os pesadelos do pai e se rebela quando descobre que José soube da matança com antecedência, mas não fez nada para alertar outros pais. A natureza humana do jovem Jesus também é realçada em uma cena famosa (e que na narrativa de Saramago ganha contornos cômicos) em que o Salvador se depara com um homem possuído por demônios. Na ocasião, Jesus ordena que os espíritos deixem o corpo do rapaz e os demônios pedem autorização para possuírem uma vara de porcos que está passando ali perto. Jesus, ansioso por libertar o homem, permite que a legião tome os porcos. Só que, na sequência, os animais se jogam do precipício e morrem no mar. Acontece que os donos dos porcos não ficam nem um pouco satisfeitos com o prejuízo. Jesus, ingênuo, quer argumentar com os donos dos porcos, mas é retirado do local por dois discípulos antes que fossem agredidos.

 

Vários trechos da obra ampliam nossa visão sobre temas bíblicos de uma forma que apenas um mestre da literatura poderia fazer. Com destaque para o colóquio entre Jesus, Deus e o Diabo, certamente o ponto alto do livro. Nessa cena o Messias questiona as intenções de seu Pai e discute a relação entre Ele e o inimigo. Saramago ainda nos brinda com a sagacidade de seu sarcasmo em um dos últimos trechos do livro, quando, durante a crucificação, Deus aparece e saúda o próprio filho, porém, em resposta, Jesus desiludido com o próprio Pai e com o futuro da humanidade diz: “Homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”.

 

A reinvenção de narrativas bíblicas nas obras de José Saramago não é exclusividade de O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Em Caim, lançado em 2009, o autor debocha com um sarcasmo ainda maior das escolhas de Deus e das atitudes de personagens bíblicos famosos como Adão, Abraão, Noé e Satã. A rebeldia de Jesus em O Evangelho lembra a petulância de Caim na outra obra de Saramago.

 

O Evangelho Segundo Jesus Cristo não é um livro fácil de ser lido. Saramago admitia que gostava de desafiar seus leitores e não estava interessado em um público preguiçoso. O autor português foi um mestre rebelde que não subvertia apenas histórias bíblicas consagradas, ele também ousou desafiar regras de pontuação, fato que incomoda muitos leitores. Mas não há argumento, livre de preconceitos, que justifique a não leitura desse clássico magnífico. A leitura de O Evangelho, no mínimo, desperta novas interpretações, novas conclusões sobre a narrativa bíblica da vida de Cristo.

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