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Sussurros Póstumos

Conto escrito em maio de 2020

Mão Sepultura.jpg

          1

            Alagoas, 1999

            Pedro acordou, mas não abriu os olhos. Em vez disso, puxou o lençol fino, enrolou-o e usou o pano para cobrir suas pálpebras, burlando a claridade que entrava no quarto pelas frestas na janela. A temperatura era agradável, o ar era puro, a sensação de acolhimento era grande e Pedro se sentia no paraíso.

Férias. Adorava despertar sabendo que não precisava ir à escola. Gostava ainda mais quando passava esse período no Nordeste. Não havia lição de casa, nem tarefas domésticas. Só comer, brincar, assistir à tevê, andar a cavalo, dar comida aos porcos e às vacas, descansar na rede, ouvir histórias, dormir e ser paparicado pelas tias e pelos avós. Só que, naquele ano em específico, seu avô paterno não estava presente para mimá-lo. Pelo que Pedro havia entendido, algo fora “derramado” na cabeça de seu vô e, por isso, ele estava internado em um hospital. Logo, toda a bajulação que Pedro costumava receber, tornara-se mais tímida. Ninguém escondia a preocupação com a saúde do velhinho. O pai de Pedro, por exemplo, parecia ter ficado mudo. Não falava quase nada desde que chegara a notícia do tal “AVC”, quando eles ainda estavam em casa. No ônibus, durante a interminável viagem de São Paulo a Alagoas, a mãe de Pedro lhe antecipou um detalhe:

“Este ano você não pode abusar da boa-vontade das suas tias, elas estão muito atarefadas por causa da saúde do seu avô”.

“Ué, mas os médicos não tão cuidando dele?”, perguntara Pedro.

“Sim, só que eles disseram que seu avô precisa de um milagre. Então você precisa rezar bastante, tá bem?”

Foram três dias confinados no ônibus, com apenas algumas horas de liberdade durante as paradas para esticar as pernas e fazer refeições, até chegarem ao destino. Nesse ínterim, Pedro rezou quase que o tempo inteiro. Não tinha muito o que fazer, mesmo, além de colar a testa na janela e ver a paisagem mudar bem aos poucos. No entanto, suas orações eram sinceras. Foram centenas de pais-nossos e ave-marias.

Agora, já hospedado no sítio da família, Pedro sentia falta do velhinho, mas, ao contrário de todos ao seu redor, não estava tão preocupado. Na verdade, não entendia o desespero dos adultos. Eles falavam sobre rezar e confiar que Deus resolveria os problemas, contudo, não pareciam estar muito convictos de que o problema seria resolvido. Só que Pedro era diferente. Pedro, sim, tinha fé. Havia rezado bastante e sabia que Deus curaria seu avô.

Enquanto reunia disposição para se levantar, o menino apreciava o momento. Agradecia aos céus por aquela calmaria. Já tinha oito anos e sabia que sua família não era rica. Mas também sabia que morava num país onde crianças da sua idade morriam de fome, então precisava agradecer por não ser uma delas. Embora isso parecesse um pouco estranho.

Pedro ouvia vozes distantes. Não conseguia distinguir nenhuma palavra, mas sabia que eram seus familiares conversando amenidades no sítio, lá fora. Aquele vozerio matinal, misturado com o canto de passarinhos e sons de outros animais do interior, era rotineiro e suave. Funcionava como um agradável despertador.

Contudo, naquela manhã, algo de extraordinário veio atribular aquele som. Em uma questão de segundos, o tom ameno se dissipou e o menino ouviu choros e soluços. Alguém havia chegado com alguma notícia ruim. Pedro queria estar enganado. Não queria ter que suspender seu estado de alegria. Tirou o lençol da cara e se sentou, tentando escutar melhor. Não teve tempo de discernir direito o que estava acontecendo lá fora. Sua mãe entrou no quarto, com um semblante rígido. Sentou-se na cama e o abraçou.

– Seu avô faleceu.

– Ué!

         2

            O tédio era gritante. Primeiro, sentiu outras coisas ruins. Angústia, principalmente. Confusão. Medo. Muita gente chorando. Não sabia onde fixar os olhos. Olhou para as paredes, mas elas estavam repletas de imagens religiosas que, ou eram muito deprimentes, ou muito assustadoras. Olhar para as pessoas era se deparar com olhos vermelhos e lábios e queixos retorcidos. O caixão era a coisa mais aterradora da sala. Resolveu, então, sentar-se numa cadeira e encarar os próprios tênis. Ficou lá, balançado os pés e assistindo os cadarços pularem. Porém, em um dado momento, sem que se desse conta, Pedro se envolveu em uma brincadeira esquisita. De repente, estava em um bate-papo mental com o avô falecido.

– É confortável essa caixa aí?

 

– Não muito – respondeu uma segunda voz dentro de sua cabeça. – Prefiro a minha cama.

– Então por que o senhor não se levanta e vai pra sua casa?

 

– Não consigo. – Era uma voz sussurrante, porém perfeitamente audível.

– Pede ajuda aos adultos.

 

– Eles não me ouvem. Por que você não fala com eles por mim?

 

Apesar de estar diretamente dentro de sua cabeça, Pedro ouvia com nitidez a voz do avô. E não tinha maturidade para questionar se aquelas palavras eram, mesmo, de um velhinho alagoano ou não passavam de pensamentos de um garoto que, apesar de nordestino, já morava em São Paulo quando aprendeu a falar. 

– Eles também não me dão ouvidos – desabafou Pedro, dentro da sua mente.

Pedro ousou levantar os olhos um pouquinho.

– Eles estão chorando por sua culpa – acusou o garoto.

 

– Minha culpa? Quem disse que eu queria morrer?

 

Pedro refletiu um pouco.

 

– Acho que o senhor não tá morto de verdade. Primeiro porque você tá falando comigo e segundo porque sua cara continua igual... Quer dizer, tá meio pálida e estranha, mas tá longe de parecer uma caveira. Eu ouvi que quando a gente morre, a gente vira uma caveira.

O avô riu bastante daquele comentário, mas Pedro não entendeu. Estava falando sério.

– Eu não sei o que aconteceu de errado – confessou o garoto. – Disseram que se eu rezasse o senhor ia melhorar. Eu rezei e o senhor piorou!

O velhinho não respondeu. Pedro olhou ao redor. Ninguém ouvia o bate-papo mental entre avô e neto. E ninguém parava de chorar, tampouco.

– Não sei por que estão tão tristes. Eles dizem que o senhor vai prum lugar melhor e que em breve estarão lá com o senhor. Será que...

 

– Escuta, Pedro, o lugar que eles vão me botar, na verdade, não é tão bom assim. – A voz de seu vô parecia preocupada. – É escuro e tem cheiro de terra molhada. Eu vou precisar da sua ajuda...

– Minha ajuda?

         3

            Em um dado momento, sua mãe o tirou daquela sala sinistra e foram caminhando até um outro lugar. Pedro conhecia aquele terreno, ficava perto do sítio dos seus avós e se chamava Cemitério Santa Bárbara. O garoto não era ingênuo a ponto de não saber para que servia aquele local. Todo mundo sabia que ali era onde os adultos enterravam ou escondiam as caveiras. Todavia, Pedro demorou para entender o que ele e sua família faziam parados naquele campo.

 

Ficaram lá, em silêncio na companhia de alguns parentes que o menino não conhecia direito, mas, pelo menos, estes não choravam. No entanto, logo chegou um carro grande e preto. Ao redor do veículo estavam os parentes que o garoto conhecia melhor e que choravam mais. Seu pai estava entre eles e veio carregando, com o auxílio de outros homens, um caixão que foi retirado da traseira do carro preto. Quando eles posicionaram o esquife próximo a uma cova aberta, Pedro perguntou à sua mãe:

 

– Eles se lembraram de tirar o vovô de dentro da caixa, né?

– Pedro, fica quieto – respondeu a mãe, com voz baixa e ríspida.

– Não, garoto – gritou uma voz de dentro do caixão. – Eu continuo aqui!

O menino ficou boquiaberto. Era um absurdo deixar o avô dentro daquela coisa! E mais absurdo ainda era o fato de que ninguém mais parecia estar ouvindo o senhorzinho gritando.

– Bate na madeira, vovô. Bate porque eles não estão te ouvindo! – Pedro gritou dentro de sua mente.

 

– Não consigo me mexer, Pedro!

 

O idoso parecia desesperado. E não era para menos. O garoto estava indignado com aquele ultraje, mas não sabia o que fazer. Desejou que os adultos percebessem o erro que estavam cometendo.

– Ele nunca esteve em um enterro antes? – perguntou um homem, que, segundo sua mãe, era um primo de terceiro degrau.

A mãe de Pedro respondeu que não com a cabeça. O primo se aproximou, colocou a mão no cocuruto do menino e bagunçou seus cabelos. Pedro, com um gesto arisco, afastou a cabeça e franziu o cenho para seu parente.

Enterro? Tinham dito ao menino que iriam ao velório do avô. Ninguém havia dito nada de enterro!

Quando um padre começou a falar, Pedro achou que seu desejo havia sido realizado. Aquele homem de Deus ia mandar que abrissem o caixão e tirassem seu avô de lá. O sacerdote falou um monte de coisas esquisitas, leu uma passagem de um livro, mas não disse nada sobre tirarem o velho do esquife. O tempo passava rápido e o garoto não conseguia processar tudo o que estava acontecendo. A movimentação, os lamentos, o padre. De repente, o caixão já estava atado a cordas e começavam a descê-lo na cova aberta. Pedro arregalou os olhos. Sua mãe o segurava pelos ombros e não fazia nada! Seu avô gritava de dentro do caixão pedindo ajuda, mas aqueles adultos insensíveis não ouviam ou fingiam não ouvir. Agora o menino entendia o que o avô quisera dizer quando falou que ia precisar de sua ajuda para não ser levado a um lugar escuro e com cheiro de terra molhada.

 

Um homem com uma pá começou a jogar barro na cova. Pedro se desvencilhou de sua mãe e correu na direção da sepultura. Pularia naquele buraco e tiraria seu avô de lá sozinho. Mas seu pai o agarrou, a um passo de cair na cova.

 

– Maria, tira o Pedro daqui.

 

Sua mãe veio obedecer e o pegou firme pelo pulso. O menino tentou resistir, porém sua mãe o apertou mais forte.

– Vocês são cegos! E surdos! – gritou Pedro, desesperado. – Ele não pode ser enterrado, ele não é uma caveira! Ele só está dormindo!

 

         4

            São Paulo, 2019

            Era janeiro e Pedro procurava um emprego novo. A validade de seu seguro-desemprego estava quase acabando e o rapaz começava a se preocupar com a possibilidade de não poder pagar o aluguel e ter que voltar para a casa dos pais.

– Pedro Palmeira, 27 anos... – leu o executivo, segurando seu currículo. – Você tem a minha idade e o meu nome, bicho! Ainda bem que todo mundo me chama de Júnior, pode me chamar de Júnior também. Você é palmeirense, xará?

– Sou, sou – respondeu Pedro, sem entusiasmo algum.

 

– Palmeirense até no nome, hein?! Hahaha – gargalhou Júnior.

 

– Verdade.

 

Pedro sorriu, mas não era um sorriso genuíno.

 

A sala era pequena e desarrumada. A mesa estava cheia de papeis, notas fiscais, pastas, lápis, canetas e outras quinquilharias. No chão, atrás do entrevistador, havia uma caixa de ferramentas aberta. O homem, que, segundo lhe disseram, era diretor e filho do dono da empresa, vestia uma camisa social branca e uma gravata com desenhos de rostinhos amarelos sorridentes, como emoticons de celular. A careca do homem brilhava e o suor em sua testa mais ainda. Pedro decidira que não gostava dele, mas isso não era uma novidade. Nunca havia gostado de ninguém com cargo de chefia. Muito menos se esse alguém fosse filho do dono da empresa.

– Então começamos mal essa entrevista, Pedrão, porque eu sou corintiano – falou Júnior. – Sou do time do povo. Mas pelo menos encontramos uma diferença entre nós dois.

“A diferença começa no fato de que eu tenho muito cabelo e você não tem nenhum”, pensou Pedro. Na verdade, exceto pelo nome e a idade, Pedro não conseguia encontrar semelhanças entre eles, mas era melhor não contrariar o homem.

– Eita – disse o Pedro candidato. Tentou dizer algo engraçado, mas não conseguiu pensar em nada. Estava preparado para uma entrevista formal, não para um papo de boteco, e improvisar não era uma de suas qualidades.

 

Um silêncio perdurou na sala enquanto o homem terminava de ler seu currículo.

 

– Ah! – disse o executivo, dando um peteleco no papel. – Você é o cara nordestino. Minha secretária me falou de você. Realmente, seu currículo é muito bom e você gabaritou na provinha teórica. Agora vem cá, você é do Nordeste mesmo?

– Sou.

 

O calor, a sala abafada, as paredes amarelas e o cheiro de ferrugem que emanava dos arquivos logo atrás da cadeira em que sentava causavam náuseas em Pedro. Contudo, quem estava quase fazendo o rapaz vomitar era seu entrevistador com bafo de pinga.

– É que você nem tem sotaque, nem tem a cabeça grande e é branquelo, ainda por cima!

 

Júnior riu. Pedro se manteve sério, nem um sorriso forçou desta vez.

 

– Brincadeira, brincadeira – disse o homem, disfarçando a graça. – Eu só brinco assim porque meu pai também é nordestino, é cearense aquele porra. E vive fazendo piada com isso.

– Sei – respondeu Pedro. Outra vez, o rapaz tentou dizer alguma coisa, qualquer coisa, mas se falasse o que estava pensando não conseguiria a vaga.

– Meu pai veio do Nordeste com uma mão na frente e outra atrás – comentou Júnior. – Ergueu essa empresa do nada! Por isso que eu digo, o povo nordestino é trabalhador, Pedrão.

O homem fez uma pausa, revirou os olhos e complementou seu discurso:

 

– Quer dizer, a maioria é trabalhadora, né? Porque vagabundo tem em todo lugar.

 

– Aham – exprimiu Pedro, sem conseguir pensar em nada melhor para dizer.

 

– Bom, Pedrão, conta um pouco aí das suas experiências, do seu conhecimento, da sua formação, tudo.

 

Pedro contou sobre seu curso técnico em mecatrônica e sobre seus empregos anteriores. Era o que devia interessar para a empresa.

– Eu vi aqui que você tá fazendo engenharia mecânica – disse o entrevistador.

 

– Essa parte tá desatualizada. – Pedro havia mandado o currículo para aquela empresa havia alguns meses. – Tranquei o curso agora que a verba tá apertada.

– Puxa, que chato! Não tem ninguém pra ajudar você a pagar os estudos?

 

– Não.

 

– Você é bem monossilábico, hein?

 

Pedro sentiu que estava perdendo a vaga. Encarou seu interlocutor, pensando em uma resposta que não fosse monossilábica. Contudo, o que veio em sua mente não era um pensamento dele.

"Não tô com saco pra ficar entrevistando ninguém, não. Foda-se, vou contratar esse veado mesmo."

– É, você é mais que monossilábico – disse o careca, sorrindo. – Você é um mudo que, às vezes, fala. Mas eu vou contratar você, cara. De falador nesta empresa já basta eu. Você é o novo técnico de manutenção dessa bagaça. Bem-vindo à Workmach.

Pedro Júnior esticou a mão sobre a mesa e Pedro Palmeira, meio que a contragosto, a apertou.

 

         5

            Começou a trabalhar numa sexta-feira. Júnior queria que ele começasse o quanto antes porque a empresa estava abarrotada de clientes para atender. E, além de tudo, o novato tinha de ganhar afinidade com as máquinas o mais rápido possível. Pedro não reclamou. Quanto antes começasse a trabalhar, mais ganharia no fim do mês. E precisava garantir que teria dinheiro para pagar o aluguel.

Júnior havia prometido que apresentaria a empresa, os colegas e as máquinas para o recém-contratado. Cumpriu uma parte da promessa e desapareceu. Pedro trabalharia com outros dois técnicos: William e Sabrina. Júnior o levou aos dois, fez uma breve apresentação, saiu para atender um telefonema e só voltou a aparecer na hora de ir embora.

Pedro teria ficado completamente perdido, não fosse o auxílio de Sabrina. A moça encarregou-se de mostrar a empresa para ele. A base dos técnicos era um galpão amplo, repleto de máquinas industriais, com quatro anexos: uma sala de treinamentos; um refeitório; um vestiário e um escritório, o mesmo em que Pedro passara pela entrevista e pela prova teórica.

 

Toda a Workmach era um espelho do que Pedro havia visto no escritório. Bagunça, sujeira e cheiro de ferrugem.

 

Por último, Sabrina o apresentou aos seus objetos de trabalho: as máquinas. Mandriladoras, prensas, fresadoras, tornos CNC e outros amontoados de metais, óleos e parafusos para uso industrial.

– Dá conta de consertar todas essas belezinhas aí quando elas derem pepino? – perguntou Sabrina, com um risinho malicioso.

– Com uma mão nas costas – riu ele.

 

Era, no entanto, uma brincadeira. Não conhecia todas aquelas máquinas com a intimidade necessária para poder fazer todo tipo de manutenção, mas tinha conhecimento suficiente para aprender rápido.

Pedro logo simpatizou com Sabrina. Durante o almoço, o recém-contratado percebeu que os dois seriam bons amigos. Já quanto a William, não se poderia dizer o mesmo. O técnico era uma versão proletária do chefe. Era um pouco mais sóbrio que Júnior, mas também tinha uma língua afiada. Mesmo assim, Pedro estava decidido a se dar bem com os dois para evitar perder, de novo, o emprego por brigas com os colegas.

William passou a tarde ocupado com a programação do software de uma máquina. Sabrina foi quem mostrou a Pedro as falhas mais comuns nos equipamentos que a empresa prestava manutenção. O tempo passou rápido e no final do expediente o trio combinou um happy hour de boas-vindas ao novo funcionário. Pedro pensou em recusar por conta da falta de dinheiro, mas iniciar o entrosamento com seus colegas era essencial. Para sua sorte, foram a um bar tão podre quanto a empresa e cujos preços cabiam em seu orçamento.

Começaram a beber cerveja e jogar conversa fora. Não demorou muito para Pedro descobrir que manter um clima amistoso com Wiliam seria mais difícil do que ele pensara.

– Então você é nordestino? – perguntou o colega.

"Outra vez esse assunto", pensou Pedro.

– O cara que se demitiu e abriu a vaga pra você era boliviano – continuou William. – A Sabrina além de mulher é negra e lésbica. Cacete, parece que só eu não entrei por cota na empresa!

William riu do próprio comentário. Sua risada era mais silenciosa que a do chefe, mas era maldosa do mesmo jeito.

– Vai se acostumando, Pedro – disse Sabrina. – Só falta uma suástica pra Workmach virar uma filial neonazista.

William parou de rir e fechou a cara. Pedro, de alguma forma, sabia o que o colega diria: “Não pode mais fazer piada?”.

– Puta que pariu! – exclamou William. – Tudo é nazismo! Não pode falar mais nada? Não pode mais fazer uma brincadeira?

– Calma, Will, eu tava brincando. – A cara de Sabrina não denotava nenhuma brincadeira.

Pedro amenizou a conversa, fazendo perguntas sobre o trabalho. Teria oportunidade de colocar William em seu devido lugar um outro dia. Por enquanto precisava se adaptar à Workmach e evitar conflitos. Só que ninguém queria falar de trabalho numa sexta-feira após o serviço. Entre uma Brahma e outra, a conversa chegou aonde Pedro não queria.

Wiliam ergueu o pulso para olhar o relógio.

– Preciso parar de beber. Amanhã cedo tenho que estar na igreja. – William tomou de um gole o resto de cerveja em seu copo. – Qual sua religião, Pedro?

– Sou ateu.

 

William demorou um tempo para assimilar a resposta.

 

– Como pode? – perguntou, olhando para Sabrina, como se ela fosse responsável pela resposta.

– Sou cético demais pra acreditar no que eu não vejo e nem sinto – Pedro apressou-se a responder.

William o encarou.

– Você nunca teve uma experiência sobrenatural? Nunca presenciou algo que a ciência não pode explicar?

Pedro queria ter respondido de imediato, porém não conseguiu. Pensou um pouco antes de abrir a boca.

– Ah... Não. E você?                

           

– Várias – respondeu William. – A mais marcante foi quando eu era criança e Deus falou diretamente comigo. Vocês podem pensar que eu estava falando sozinho, mas Ele disse algo que se tornou realidade. Ele disse que eu ia ser engenheiro.

– Mas você ainda nem é engenheiro! – disse Sabrina.

– Em alguns meses serei.

 

– E você ouviu a voz dEle? – perguntou Pedro.

 

– No meu coração, sim.

 

A princípio, Pedro pensou em medir as palavras para não ofender a fé do colega, porém, logo se lembrou que pouca gente media as palavras para não o ofender.

– Bom, deve ter sido uma experiência muito forte pra você, mas não me convence de nada.

 

– Eu tinha 6 anos! – argumentou William. – E nem sabia o que era um engenheiro. Na época eu queria ser médico.

Pedro abriu um meio sorriso, ironizando a fala do colega. William fez uma careta, percebendo o deboche.

– E você, Sabrina? – perguntou Pedro. – Já teve alguma experiência sobrenatural?

– Não sei se foi sobrenatural, mas já passei por uma experiência meio bizarra – começou a moça. – Eu tava no interior, tinha ido fazer uma manutenção pela Workmach, tava cansadaça, cheguei lá tarde e fui direto pro hotel. Só tirei a roupa, me joguei na cama e dormi. Aí, sei lá quanto tempo passou eu acordei e não conseguia me mexer.

Os dois rapazes estavam em silêncio, ouvindo curiosos.

– Eu abri os olhos só que o quarto tava escuro e eu não conseguia enxergar nada, eu nem me lembrava como tinha ido parar ali. Comecei a me desesperar, entrei em pânico mesmo. Queria me debater, mas não conseguia mexer nada. Nem respirar eu sei se eu tava respirando. Aí eu comecei a sentir que tinha alguma coisa em cima de mim, me segurando. Aos poucos, meus olhos começaram a enxergar algumas coisas na escuridão e eu vi... algo como se fosse um lagarto-demônio, em cima de mim.

Ela fez uma pausa.

– E aí? – perguntou Pedro, ansioso.

– Aí, de repente, eu me levantei com tudo. O demônio sumiu. Eu voltei ao normal, me lembrei onde eu tava e até hoje eu tenho medo de dormir e isso acontecer de novo.

– Isso aí é paralisia do sono – cortou William. – Tem nada de sobrenatural nisso.

 

– Foda-se, foi bizarro.

 

– Oh, Pedro – disse William, voltando-se ao novato e ignorando completamente o clima de história de terror. – Uma curiosidade: o que você acha que acontece depois que a gente morre?

Sabrina complementou a pergunta com um comentário.

– A perspectiva de não haver vida após a morte é assustadora.

Pedro gastou alguns segundos pensando. Tentava fugir daquele assunto, mas o assunto o perseguia. Pois bem. Estava bêbado mesmo e tinha acabado de ouvir um relato particular. Acabou contando o que ele evitava contar.

– Basicamente, eu acho que a gente apodrece até sobrar só o pó. Mas eu tenho uma teoria que é mais assustadora do que não haver nada após a morte. – Pedro fez uma pausa. – Eu acho que a nossa consciência fica presa no nosso corpo e continua funcionando mesmo depois que a gente morre.

Pedro tomou um ar e estudou o interesse dos colegas. Percebeu que os dois o observavam com curiosidade mórbida, então resolveu continuar.

– Na verdade, eu já tive uma experiência estranha, sim. E foi mais ou menos parecida com a sua, Will. Só que não foi com Deus que eu conversei. Foi com meu avô morto.

– Ah! – cortou William, com sarcasmo. – Com Deus não dá pra falar, com um fantasma dá!

 

– Não. Eu não disse que falei com o fantasma dele. Na minha opinião, com quem eu conversei foi com a consciência dele, presa no cadáver.

Houve silêncio na mesa do trio por alguns segundos. Até que William explodiu numa gargalhada. Pedro estaria com vergonha agora, se não estivesse tão bêbado.

 

– Você é o cético, mas sou eu quem tem que acreditar que você é telepata e fala com os mortos? – falou William, levantando-se. – Depois dessa, eu vou até embora.

         6

            Dois meses se passaram sem grandes surpresas. Pedro estava conseguindo evitar atritos com William e Júnior, embora odiasse os dois. Dado o histórico briguento e rebelde de Pedro, a ausência de conflitos em seu novo emprego era uma proeza. Will, como era mais chamado, apesar de ter uma ideologia muito mais próxima à de seu chefe, era um rapaz carente de atenção e, portanto, buscava a todo instante a camaradagem dos seus colegas. A Workmach era pequena e acabava que os funcionários trabalhavam próximos demais. Na maioria das vezes, saíam em duplas ou mesmo em trio para atender a um cliente. Júnior, muitas vezes, também ia a campo prestar manutenção, ao lado de seus funcionários. Se pudesse, Pedro teria somente Sabrina em sua equipe, mas não conseguia escapar dos outros dois.

Certo dia, Pedro acordou com uma ligação do chefe.

 

– Acorda, Pedrão! Hahaha! – gargalhou Júnior.

 

– Fala – respondeu Pedro, sonolento.

 

O rádio relógio marcava 5h e Pedro acordava às 5h30. A quantidade de ódio que sentia pelo chefe começava a atingir níveis estratosféricos.

– Traz uma troca de roupa que hoje a gente vai viajar juntinho pra São Carlos, só nós dois.

Pedro precisou de um tempo para processar a mensagem. Depois levou mais um tempo para amainar raiva.

 

– Beleza. – Afinal, precisava muito daquele emprego.

 

Pedro desligou e se levantou imediatamente. Tinha uma mala para fazer.

 Saíram de São Paulo às nove e chegaram na empresa cliente, em São Carlos, às treze, com uma parada no caminho para o almoço. A viagem fora um verdadeiro martírio para Pedro, que teve de ouvir a narrativa dos casos extraconjugais do chefe quase que o caminho inteiro. Júnior dirigia seu carro próprio e tagarelava folgado. Pedro quase não falava, e isso não incomodava Júnior, que aproveitava o silêncio do funcionário para falar mais ainda.

 

Estavam prontos para passarem a noite hospedados em São Carlos, no entanto, o serviço se mostrou mais fácil do que o esperado e, por volta das seis da tarde, a manutenção estava concluída.

 

– Trouxe roupa, Pedrão? – perguntou Júnior.

– Trouxe.

– Trouxe à toa, então, porque vamos pra casa! Hahaha!

Ótimo, pensou Pedro. Chegaria em casa, na melhor das hipóteses, por volta das dez. Com sorte, conseguiria dormir pouco antes da meia-noite. Somaria o cansaço do trabalho com o cansaço da viagem e no outro dia tinha que estar de pé às cinco e meia. No dia seguinte, Júnior, com certeza, só chegaria à Workmach depois do almoço, isso se fosse trabalhar. Pedro teria que estar lá às oito, ou teria o atraso descontado no banco de horas. Mas estaria satisfeito se, ao menos, pudesse voltar para São Paulo sozinho.

Pedro já estava no carro, quando seu chefe se sentou no banco do motorista, depois de passar num mercado para comprar lanches. Tinha uma sacola de plástico numa mão e uma garrafa de vodca na outra. Pedro ficou observando, torcendo para não ver o careca tragando a bebida. Contudo, viu.

– Quer que eu dirija? – perguntou Pedro.

 O chefe colocou sacola e a garrafa no chão, atrás de seu banco, depois de tomar um longo gole.

 

– Fica tranquilo – respondeu. – Eu só tomei isso aqui pra me manter acordado. Acordei cedo demais hoje.

Fechou a porta e deu partida no carro.

 

– Vida de trabalhador não é fácil, não, Pedrão – disse Júnior, quando o motor pegou.

 

Pedro estava cansado, preocupado, tenso e não disfarçava o mau-humor.

 

– E eu por acaso não sei? – respondeu o funcionário.

 

Era a primeira vez que Pedro respondia o chefe com mais rispidez e aquilo era preocupante. Não era nada escandaloso ainda, mas a viagem estressante podia fazer as coisas escalarem. Quando falasse o primeiro palavrão, talvez perdesse o rumo.

– Eu sei o que você tá pensando – disse Júnior, manobrando seu Ford Fusion.

 

Depois eu que sou o telepata, pensou Pedro.

 

– Que a vida de chefe é moleza – continuou o careca. – Mas não é, não. A gente é trabalhador do mesmo jeito. Eu podia estar em casa essa hora, mas tô aqui. Trabalhando com você.

"Devia ter ficado em casa e me mandado pra cá com a Sabrina", pensou Pedro.

– Tem muito empresário que é filho da puta, mesmo, mas eu não sou. Pode ver, contrato preto, mulher, nordestino, gringo, até palmeirense eu contrato. Eu não tenho preconceito.

Júnior saiu do estacionamento e botou o carro na rua. Pedro encostou a nuca no banco e se preparou para ouvir um monólogo. Júnior ainda estava falando sobre a árdua vida dos empresários, quando pegaram a Rodovia dos Bandeirantes. Pedro pensou em interagir e dizer qualquer coisa, porém não conseguia pensar em nada mais brando que mandar o chefe se foder e dirigir calado. Então ficou quieto e continuou ouvindo.

– Liga o rádio, aí – disse Júnior, enfim mudando de assunto.

"Ele vai dizer pra eu tocar rock pesado." Pedro não conseguia explicar como ele sabia disso, contudo, era frequente que ele antecipasse em pensamento o que seria dito por outra pessoa.

– Bota um rock pesado, Pedrão. Com esse cabelão aí você deve gostar de rock pesado.

Pedro ligou o rádio. Já havia andado naquele carro outras vezes, mas era a primeira em que o chefe deixava que ele ligasse o som. Em todas as outras ocasiões, era o próprio Júnior quem mexia no rádio e sempre tocava sertanejo. Pedro se sentiu confuso com os comandos do aparelho. Saiu apertando os botões meio que aleatoriamente, tentando achar um “rock pesado” e pensando em como contar ao chefe que as músicas que ele gostava estavam num espectro muito além do dito “rock pesado”.

– Eu gosto de rock também – disse Júnior. – Só não curto essas bandas metaleiras aí que falam de demônio.

Era dessas bandas que Pedro gostava.

 Depois de um rápido sofrimento para aprender os comandos do rádio, Pedro encontrou uma pasta com o nome de rock e assim que ela foi aberta os alto-falantes começaram a reproduzir o riff meloso de Sweet Child O’ Mine.

– Opa! Deixa nessa. Guns é da hora – falou Júnior. – Cê curte Guns também?

– Adoro. – Pedro tentou não soar irônico, mas não era um bom ator.

Sacou o celular do bolso, abriu o Whatsapp e mandou uma mensagem para Sabrina:

“Socorro, eu vou matar esse cara!”

 

“O Júnior? Por favor, mata!”, respondeu ela, poucos segundos depois.

– De que bandas você gosta, Pedrão? – perguntou Júnior.

– Nirvana, Pearl Jam, Bon Jovi, Coldplay... – Pedro começou a falar bandas aleatórias, que na verdade ele odiava. – Só rock pesado.

Estava mais entretido na conversa com Sabrina pelo Whatsapp.

– Olha esses vagabundos! – falou Júnior.

Pedro tirou os olhos do celular e olhou para a estrada. Júnior se referia a um grupo de ciclistas, que transitava no acostamento.

– Em plena segunda-feira e esses caras pedalando no meio da Bandeirantes! – ralhou o motorista.

 

– Qual o problema?

 

– O problema, Pedrão? Falta do que fazer! Esporte se pratica no fim de semana. Certeza que esses veados não precisam acordar cedo amanhã.

Axl Rose resmungava que alguém tinha olhos de céu azul. Júnior criticava os ciclistas. E Pedro focou no diálogo com Sabrina, tentando não enlouquecer.

“Você nunca viajou sozinha com ele, né?”, perguntou à amiga.

“Não, ele diz que não pode ficar sozinho com mulher. Kkkkk”

Pedro ouviu o clic-clic da seta e percebeu o carro sendo desviado para a faixa da direita, mas não deu atenção à manobra. O carro seguiu reto e o rapaz continuou trocando mensagens com Sabrina. Até que algo aconteceu. Pedro sentiu um tranco, seguido de uma freada brusca e uma guinada à esquerda.

– PUTA QUE PARIU! – gritou Júnior.

 

Com o susto, Pedro jogou o celular pro alto e se agarrou à alça de segurança acima da porta.

 

– O que aconteceu? – perguntou.

Júnior já tinha o carro sob controle e encostava no acostamento

 

– Um filho da puta de um ciclista desgarrado!

 

Pedro, tremendo do susto, olhou para trás e viu uma bicicleta caída e um corpo. O ciclista estava sozinho e a estrada com pouco movimento de veículos.

 

– Puta merda! – exclamou Pedro. – Você atropelou o cara!

O carro parou completamente.

 

– Tá louco? – gritou Júnior. – Eu tava de boa, ele que saiu do acostamento e jogou a merda da bicicleta na pista.

O motorista botou as mãos na cabeça.

– Ai, caralho! Se fizerem o teste do bafômetro vão achar que foi por causa da vodca!

– Você não tá pensando em ir embora sem prestar socorro, não né?

 

Júnior olhou pelo retrovisor, depois olhou para trás e por último olhou para Pedro.

 

– Daqui a pouco os colegas dele vão chegar aqui e chamam ajuda... Melhor a gente ir embora.

 

– Vai tomar no cu! Pega a porra do celular e liga pra ambulância.

Pedro soltou o cinto de segurança e pulou do carro. Foi andando até a vítima. Estava desesperado e não fazia ideia do que fazer. Ficou um pouco mais aliviado quando percebeu que o chefe havia descido do carro em vez de dar a partida e fugir. Relaxou um pouco mais quando ouviu o atropelador dizendo “alô”. Devia estar em contato com o SAMU.

 

– Alô... Alô? Pai?

 

– Pai? – Pedro parou de caminhar na direção da vítima e voltou ao chefe.

 

– Eu acho que eu atropelei um cara – dizia Júnior ao telefone.

 

– Me dá essa bosta aqui. – Pedro tomou o celular da mão do chefe.

 

Desligou a chamada. Digitou 192, apertou o verde e devolveu o celular. Voltou a andar na direção da vítima, com passos relutantes. O que podia fazer? Encontrou o ciclista em péssimo estado. Estava de barriga para cima. Um braço e uma perna estavam dobrados em um ângulo sinistro. Havia uma poça de sangue ao redor da cabeça. E o pior eram seus olhos. Estavam tão esbugalhados que pareciam prontos para saltar das órbitas. Pedro tremia de nervoso, mas podia jurar que o homem estava morto.

 "Me ajuda, cara!", era novamente uma sussurro em sua cabeça.

– Como? – perguntou Pedro, com voz relutante.

 

"Sei lá, me faz uma massagem cardíaca."

Pedro nunca tinha feito uma massagem cardíaca nem em uma simulação. Sem contar que havia o risco de que se apertasse uma costela quebrada podia terminar de matar o homem.

 

"Por favor."

 Pedro se ajoelhou, colocou as palmas da mão no peito da vítima e tentou fazer a manobra como via na televisão.

– A ambulância está vindo. – Era Júnior que se aproximava. – E aí, como ele tá, Pedrão? Puta que pariu, Pedro! O que você tá fazendo?

– Tentando salvar ele!

 

– Caralho, meu! Sai daí, esse cara tá morto.

 

"Não tô, não, cara! Continua, acho que tô sentindo meu coração voltar."

 

Pedro seguiu fazendo a manobra. Colocou o rosto próximo à boca da vítima.

"Você não tá respirando", disse Pedro, mentalmente.

– Pedro, você tá com sua habilitação aí? Você pode dizer que era você dirigindo?

 

– Tá louco? Eu vou assumir a sua merda?

"Você sabe fazer respiração boca a boca?", perguntou a vítima.

– Foi um acidente! – gritou Júnior.

– Então assume, porra! – respondeu Pedro.

 

– Porra, eles vão fazer o teste do bafômetro e vão achar que eu tô bêbado só porque eu tomei uns três golinhos de vodca!

           

Quando o grupo de ciclistas chegou, Pedro já tinha desistido de tentar ressuscitar o morto. A única coisa que havia conseguido fora aumentar a poça de sangue embaixo da nuca do homem.

 "Cara, não funcionou!", era de novo a vítima em sua cabeça.

"Percebi. O jeito é esperar a ambulância". Pedro tentava evitar o pensamento mais pessimista por medo de que o morto o ouvisse e se desesperasse. Todavia, no fundo, Pedro já havia desistido.

Júnior, desesperado, explicou para o grupo de ciclistas, os mesmos que ele chamara de vagabundos minutos atrás, que o ocorrido não passava de um acidente. Estava fora de controle. Chorava e repetia “foi um acidente”. As reações dos ciclistas foram variadas. Alguns ameaçavam. Uns diziam que Júnior e Pedro seriam presos, outros pediam calma, outros perguntavam se o rapaz, a vítima, sobreviveria.

Pedro continuou ajoelhado ao lado do homem até a ambulância chegar. Não foi muito tempo, mas pareceu uma eternidade. Quando os socorristas se aproximaram, bastou uma breve análise para constatarem o óbvio. Não havia mais nada a ser feito.

 

Ao descobrir que estava morto, a vítima se desesperou. Suplicou aos berros que Pedro intercedesse, que insistisse aos socorristas que tentassem usar o desfibrilador ao menos uma vez. E o rapaz obedeceu.

– Ele tá pedindo pra vocês tentarem o desfibrilador.

 

Naquele momento, Pedro sentiu o julgamento de dezenas de olhares reprovadores, como se tivesse acabado de fazer uma piada de mau-gosto.

        

          7

 

 

            Pedro tirou um dia de folga após o acidente. Na quarta-feira, porém, lá estava ele no Metrô lotado, rumo à Workmach. Arrependeu-se de ter saído de casa assim que entrou no trem. Não por causa da lotação, mas por causa do sono.

Na madrugada do acidente, quando enfim chegou em casa, não conseguiu tirar de sua cabeça a imagem da vítima. Se fechasse os olhos, veria com nitidez a cabeça do homem repousando na poça de sangue. Também conseguia enxergar o corpo inerte enquanto ele tentava fazer massagem cardíaca.

 

A definição de horror estampada em sua mente. Não conseguiu dormir um segundo sequer daquela madrugada. Não foi trabalhar, não tomou café da manhã. Tentou espairecer, andando pelo bairro. Comeu um misto-quente na padaria. Fez algumas compras no mercado. Assistiu a um filme. Cozinhou o jantar, mas jogou a comida fora porque o gosto estava péssimo e porque não tinha fome. Nada mudou seu humor. Na cama, as imagens haviam desaparecido, mas a voz voltou à sua memória. Não ouvia novas queixas do morto, mas sua mente rememorava as súplicas desesperadas do ciclista. Novamente, Pedro não dormiu.

Porém, naquele maldito vagão do Metrô, o sono o atingiu em cheio. Bocejava a cada minuto. As mãos na barra de apoio. Eventualmente, encostava a testa no braço, mas retirava logo em seguida para evitar que dormisse e ficasse para sempre naquele trem indo do Tucuruvi ao Jabaquara e vice-versa.

 

Pegou o celular, na tentativa de espantar o sono. Abriu o Facebook e deu de cara com uma publicação de William. Era uma foto em que o colega estava de óculos escuros em seu carro. A legenda dizia: “Se quer ser rico faça como eu: acorde cedo, tome um banho, um café e vá trabalhar. Ainda não fiquei rico, mas estou no caminho. HAHAHAHA. #Trabalho #Força #Foco #Fé”. Pedro xingou William e não tinha certeza se apenas em sua mente ou se havia verbalizado o insulto. Pelo modo como os outros passageiros o encaravam, concluiu que a segunda opção era a verdadeira. Guardou o celular no bolso, morto de vergonha.

Ao chegar na Workmach, Pedro encontrou Sabrina. Curiosa para saber os detalhes do acidente.

– Cadê o Júnior? – perguntou ele, antes de responder os questionamentos da amiga.

– Não vem trabalhar esta semana – contou Sabrina. – Dizem que ele está traumatizado.

Perdido em um misto de ironia e tristeza, Pedro começou a rir.

– E quanto ao William? – perguntou ele, quando voltou ao normal.

– Acabou de sair, foi fazer uma manutenção em Diadema, não deve voltar hoje. Agora você pode me contar que porra aconteceu em São Carlos?

Pedro sacudiu a cabeça. Sentiu que podia começar a chorar. Abraçou Sabrina com força, como se pudesse manter o controle enquanto se segurasse nela. Sua amiga ficou confusa, a princípio, mas retribuiu o abraço. Quando se soltaram, Pedro contou a história da maneira mais detalhada que pôde. Não escondeu nada, nem mesmo o diálogo com o morto. Após o fim do relato, Sabrina o olhava neutra. Pedro não saberia dizer se ela acreditava nele ou não.

– Que merda – disse ela, por fim.

Percebendo que o assunto havia sido encerrado, Pedro perguntou se havia alguma tarefa para ele. Precisava trabalhar ou acabaria dormindo em pé. Sabrina pediu que ele lubrificasse as máquinas do mostruário, enquanto ela trabalhava no software dos tornos CNC.

Pedro terminou sua tarefa em tempo recorde e percebeu que estava exausto. Não conseguiria se manter em pé por muito tempo. Foi até a sala de treinamento, onde Sabrina programava em um computador.

– Brina, eu tô caindo de sono, literalmente.

– Vai pra casa – disse ela, sem tirar os olhos da tela.

– Melhor, não. É arriscado eu chegar em casa e perder o sono. Acho que vou tirar um cochilo na Doblò.

Pedro se referia à minivan da empresa.

– Vai lá.

– Se acontecer alguma coisa, você me chama. Se eu dormir demais você me acorda, também.

– Beleza.

Pedro foi até a garagem da empresa. Escura, silenciosa e desértica. O sono o convidava para uma nova viagem. A Doblò estava lá, solitária, esperando por ele. Pedro entrou pelo lado do passageiro, reclinou o banco, fechou os olhos e adormeceu na hora.

Não saberia dizer quanto tempo havia passado, mas sentiu que o relógio estava andando para trás. De repente, Pedro não era mais um técnico em mecatrônica, não era mais um adulto. Era apenas um garoto de oito anos no paraíso. Não estava sonhando. Não havia imagens nem cores. Pedro estava mergulhado em uma completa escuridão, como se houvesse um lençol cobrindo suas pálpebras. Sentia-se confortável e seguro. A temperatura era agradável. Os sons ao seu redor eram verdadeiros calmantes. Passarinhos cantando e vozes indistintas conversando sobre amenidades. A mesma sensação de paz e tranquilidade que ele sentia em Alagoas quando criança.

As coisas só começaram a mudar quando as vozes começaram a chamar seu nome.

"Ah não! É domingo, deixa eu dormir mais um pouquinho", pediu ele em seu sonho escuro.

 

"Pedro", chamaram de novo.

Sem notícia ruim desta vez. Não venham me dizer que alguém morreu.

As vozes se calaram e as sensações boas foram embora. Agora, Pedro não só não enxergava nada, como, também, não ouvia nada. Era só ele e seus pensamentos. Teria alguém morrido?

Ei! O que aconteceu?

Silêncio.

Pedro queria abrir os olhos, mas não conseguia. Queria falar, mas só conseguia pensar. Tentou se mexer. Nada. Sua consciência voltara à realidade de maneira súbita. Pedro era um homem deitado no carro da empresa. De olhos fechados e imóvel. Preso dentro de seu próprio corpo. Como os mortos que falavam com ele.

O cochilo havia perdido completamente a graça, o conforto e a paz. Agora reinava a confusão e a angústia. Como assim, não conseguia se mexer? Não tinha controle nem das suas pálpebras. Não conseguia perceber se seu coração estava batendo. Tampouco sabia se estava ou não respirando. Talvez estivesse morto. Finalmente, conseguia entender o sentimento de seu avô e do ciclista. Estar imobilizado, incapaz, vulnerável. Sentiu o pânico crescendo e nem ao menos podia expressar esse sofrimento.

 

Pedro já podia prever o que viria a seguir. Sabrina o encontraria morto, chamaria ajuda, seria levado a um hospital, sentiria o médico abrindo sua cabeça e seu peito para descobrir a causa mortis. Depois, fariam um funeral para ele e por fim seria enterrado. A dúvida era quando conseguiria sair do próprio corpo. Se é que sairia. Depois daquele enterro, nunca mais havia voltado ao Cemitério Santa Bárbara para ver se seu avô ainda estava lá, e se arrependeu disso. Onde estaria o velhinho agora que até sua caveira já devia estar em mau estado? Será que ele viria buscá-lo? Ajudá-lo a desencarnar?

Não estava morto! Porra! Não podia estar. Pedro estava cansado, porém não estava doente. Sua saúde era de ferro, todos seus exames atestavam isso. Não poderia ter morrido do nada. Talvez fosse uma paralisia do sono, como a que Sabrina relatara. E se estivesse cataléptico? Pior ainda. Se não percebessem que ele não estava morto, fariam uma autópsia em seu corpo vivo. Diziam que, no estado atual da medicina, era impossível que um médico julgasse como morto um paciente que na verdade estivesse preso em uma condição de catalepsia. Mas quem o garantiria isso? Depois que ele estivesse a sete palmos embaixo da terra seria difícil voltar e reclamar que o médico errou.

Tentou retomar o controle. Sentiu que estava respirando. Acalmou-se um pouco com a sensação de ar em seus pulmões. Mas talvez fosse um devaneio. Tentou mexer o braço direito. Não conseguiu, porém o esforço o deixou cansado. Fantasmas sentiam cansaço? Estava vivo. Definitivamente, estava vivo. Tentou mexer a mão. Nada. Tentou de novo. Sua mão continuava rígida. Talvez devesse se focar em uma parte menor. O mindinho. Sentiu as falanges contraindo e foi como sair do mar depois de um princípio de afogamento.

 

Pedro projetou seu corpo para frente com violência. Livre. Ofegante, porém vivo. Mexeu todos os dedos da mão para garantir que havia retomado o controle do próprio corpo. Aquela era a sensação de liberdade, como a de um preso libertado após décadas no cárcere por um crime que não cometera.

Pedro passou alguns instantes refletindo. Quem sabe era hora de comprar uma passagem para Alagoas e fazer uma visita ao Cemitério Santa Bárbara? Esclarecer uma dúvida. Se chegasse naquele túmulo, chamasse seu avô e ele respondesse...

Pedro saiu da minivan e foi à sala de treinamentos.

– Brina.

– Já acordou? – Ela o encarou com curiosidade.

– Acho que acredito em vida após a morte. E é uma perspectiva assustadora.            

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