Vertigem
Conto escrito em dezembro de 2017
I
“Sinto muito, mas não consigo mais.”
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A frase preocupou Alice, mas ela preferiu não dar atenção imediatamente. Minutos antes, havia recebido uma notícia que a enchera de alegria. A jovem tinha consciência de que André estava passando por mais um momento delicado, no entanto a vida dela também era recheada de turbulências e ela não queria dar vazão a uma nova onda de desânimo. Além do mais, agora estava prestes a começar sua aula de francês e seria razoável manter um mínimo de bom humor.
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Não consigo mais. Fechou o aplicativo do Facebook, apertou o botão que apagava a tela do celular e o guardou em sua bolsa. Remexeu suas coisas para encontrar o material da aula. Agora sua mente pendia entre a felicidade de ter encontrado seu nome na lista dos aprovados e a preocupação com André. Continuou remexendo, mas não conseguia encontrar sua apostila na bolsa. Sentiu um calor incômodo tomar conta de seu rosto. Era incrível a facilidade com que seu humor podia ser abalado. Instantes atrás estava planejando conversar com André, fazer as pazes e contar a boa notícia a ele. Depois eles podiam sair, tomar uma cerveja (ela mal podia acreditar que já tinha 18 e finalmente podia beber sem precisar estar escondida), comer batatas fritas, rir e jogar conversa fora.
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Dentro de sua bolsa, além de itens de maquiagem e algumas bugigangas de pouca relevância, só havia um caderno de anotações; um livro com a biografia do Ozzy Osbourne, que ela andava lendo no Metrô; um guarda-chuva e suas apostilas de idiomas. Como Alice costumava se confundir com qual dia ela tinha aula de quê e muitas vezes tinha levado a apostila errada, de uns tempos para cá ela levava todas as apostilas para o curso, independente de qual idioma era a aula do dia. De qualquer forma, não era muita coisa. Não deveria ser um problema encontrar o material certo. Mas naquele instante, sua mente estava tão nublada quanto céu antes de tempestade. E por falar em céu, bateu em Alice uma vontade desesperada de subir em algum lugar alto para tomar um ar, no topo de um prédio, por exemplo. Porém ela não podia fazer isso agora, teria de esperar o momento de chegar em casa. Então poderia ir até lá em cima com André.
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Alice precisava desesperadamente tomar um ar. Sem pedir licença, saiu da sala no momento em que a professora entrou. Pegou um copo de plástico na recepção da escola de idiomas, encheu-o de água e saiu para beber lá fora. Mesmo após ter aprendido tantos truques com André, ainda tinha problemas para manter o humor. A psicóloga também tentou ajudar. No começo até que funcionou, mas depois de um tempo não havia hobbies, exercícios físicos, desabafos, listas, contagens, enfim... nada que conseguisse mantê-la tranquila por muito tempo. “Você é tão nova...”, os outros diziam. Esse tipo de comentário fazia com que Alice considerasse comprar um revólver e matar pessoas chatas e intrometidas. O problema é que muita dessa gente chata eram, na verdade, pessoas que se preocupavam com ela. Apenas não sabiam como ajudar, e acabavam atrapalhando.
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André também devia estar se sentindo angustiado naquele exato momento. Os dois se pareciam muito. Exceto, talvez, pelo fato de que ele costumava se dar ao trabalho de fingir estar animado. André raramente contava aos outros quando estava mal. Preferia ficar sozinho e sentir o ar bater em seu rosto. Ele não era do tipo de pessoa que publicava uma mensagem nas redes sociais dizendo que não suportava mais.
II
Alice saiu apressada do Metrô. Queria chegar o mais depressa possível em casa. Queria encontrar o namorado logo. Moravam no mesmo condomínio. Se pudesse utilizar uma máquina de teletransporte apenas uma vez na vida, certamente usaria agora. Precisava contar a André que havia passado num dos vestibulares mais concorridos do país. Também queria ouvir de André o que o afligia dessa vez para que ela pudesse ajudá-lo. Queria pedir desculpas. Os dois haviam brigado alguns dias atrás, coisa boba, mas ela fora mais rude do que o necessário. Estavam sem se falar desde então. E pensar que as pessoas sempre diziam que eles eram o retrato do casal perfeito, o que era uma bobagem. Eles se amavam perdidamente, mas, no geral, eram um casal comum. E brigavam bastante.
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A algumas quadras de seu condomínio, uma ambulância silenciosa dobrou a esquina e veio em sua direção. Passou por ela sem pressa alguma, sirene desligada, soturna como um médico ao dar a má notícia aos parentes do enfermo.
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Ao chegar em sua rua, Alice avistou uma viatura da polícia parada em frente ao condomínio. Apressou mais o passo, ainda não estava correndo, mas estava à beira disso. Entrou no condomínio como uma bala. Escutou alguém chamar seu nome, mas não deu importância. Agora sim, estava correndo. Deu a volta no prédio, que tinha o formato de um U, dirigindo-se aos fundos do condomínio, onde ficava o estacionamento. Chegando lá, estava ofegante. Havia uma fita preta e amarela que formava um retângulo, isolando uma área do pátio. Alguns vizinhos estavam atrás do isolamento e dois policiais também. No centro do retângulo criado pela fita, algo chamava atenção. Alice viu sangue e um lençol cobrindo um volume disforme. Próximo ao corpo, jazia um livro com a capa fosca. Parecia fazer companhia ao cadáver.
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Alice caiu de joelhos, o músculo de seu queixo se contorceu e ela começou a chorar aos soluços.
III
— Como você sabe que era ele? — perguntou André, parecendo divertido.
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Os dois subiam uma escada estreita que levava ao topo do prédio. Eram vizinhos desde a infância, mas só se conheceram quando passaram a estudar na mesma turma, no Ensino Médio.
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— Porque só pode ser ele — respondeu Alice. — Ele tem cara de assassino.
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Estavam conversando sobre um assassinato ocorrido em uma série de TV que os dois adoravam.
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— Seria muito óbvio.
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Chegaram no último patamar da escada e deram de cara com uma porta. André retirou do bolso um molho de chaves. Era filho do zelador e, portanto, tinha acesso a lugares restritos do condomínio. O terraço do prédio não tinha nada de mais, por isso costumava ficar bloqueado para os moradores.
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Quando André destrancou e abriu a porta, uma lufada de ar fresco os recebeu com o entusiasmo de um cão ao rever os donos. A feição de André mudou um pouco. Se antes ele parecia de descontraído, agora ele tinha um semblante de dúvida, como quem percebe que, talvez, tenha acabado de cometer uma bobagem.
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— E então? O que você queria me mostrar? — perguntou ela.
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— Ah, é — ele disse, como que despertando de um rápido transe e saiu para o terraço. — Esse é meu local secreto favorito.
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Alice também saiu e fechou a porta. Olhou ao redor e não viu nada interessante ou surpreendente. Era apenas uma ampla laje com alguns cabos e antenas. Nos fundos do condomínio, além do estacionamento, a vista era de uma pequena, porém bonita, área verde, um parque público com algumas árvores chamativas. Tirando isso, o que se via ao redor eram os prédios vizinhos.
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— E o que tem de interessante pra fazer aqui? — perguntou a garota.
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André pensou um pouco.
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— Na verdade, nada que não se possa fazer em outro lugar... mas a sensação é melhor por aqui.
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Ela riu e André a acompanhou.
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— Mais cedo você tava falando de seus problemas de ansiedade e tudo mais... Eu costumo vir aqui em cima quando eu tô me sentindo mal.
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André parou de rir nesse momento e Alice também.
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— Só isso? — Ela não conseguia entender como ir até o terraço poderia ajudar alguém que estivesse se sentindo angustiado.
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O casal começara a namorar havia apenas alguns dias. Eram adolescentes com problemas parecidos, conversavam bastante, mas ainda não se conheciam tão bem.
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— Sei lá. Acho que de tanto ver nos filmes o pessoal sentado na beira do terraço, fazendo nada, fiquei com vontade de fazer igual... — disse André. — Acabei pegando gosto.
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Ela o encarou, tentando descobrir se ele estava brincando com a cara dela.
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— Como assim?
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— Eu vou te mostrar.
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Deu as costas à garota e caminhou em direção aos fundos do condomínio.
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— André, isso é uma brincadeira?
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Ele parou e se virou.
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— Não. Vem comigo.
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O topo do prédio não era um local convidativo e não previa a permanência de ninguém lá em cima, tanto que só havia um parapeito decente no lado da frente. Nas laterais e no fundo só existia uma mureta da altura de um rodapé, o que, definitivamente, não servia para segurança.
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Alice fez menção de ir até ele, mas deu apenas um passo e parou.
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— Isso é perigoso.
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— Sim, mas com cuidado não vai acontecer nada.
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Relutantemente, ela foi até ele e eles caminharam até perto da borda. Quando foi possível enxergar o chão Alice parou. André foi até a beirada. O garoto olhava para as árvores do parque a sua frente, mas não para baixo. Agachou-se e se sentou na mureta, deixando os pés pendendo no ar. A visão daquele ato gerou uma potente vertigem em Alice. Por sorte, ao seu lado, erguia-se um poste de telefonia que sustentava uma antena, Alice segurou-se no poste e isso a ajudou a manter o equilíbrio. Ela quis xingá-lo, mas estava tonta demais para isso.
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— André, sai daí. — Foi tudo que ela conseguiu falar.
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— Não, vem cá você — disse ele, virando o rosto para ela e sorrindo como uma criança.
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— Nem fodendo! Eu tenho medo de altura e você sabe disso.
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— Eu também tenho.
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Se aquilo fosse verdade seria o paradoxo mais absurdo da história. O prédio tinha seis andares. Não era dos maiores, mas era alto suficiente para causar uma bela vertigem a qualquer um que tivesse medo de altura.
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De repente Alice percebeu que estava muito cansada. Agachou-se onde estava, sem soltar a trave.
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— Na primeira vez que eu subi aqui em cima eu não consegui chegar nem onde você está agora — afirmou ele. — Em compensação, no dia que consegui sentar aqui...
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Ele se calou por um instante e depois concluiu:
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— Me senti o cara mais poderoso da Terra.
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— Tá bom, agora vamos voltar — falou ela.
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André voltou seu rosto para frente, agora sim ele olhou para baixo, mas não por muito tempo.
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— Hoje toda vez que eu venho aqui a sensação é de vitória.
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Ela não o ouviu muito bem, já que ele estava de costas para ela, mas aquilo não importava, tudo que ela queria era sair logo dali.
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— Olha, eu vou descer e espero que você venha comigo.
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— Se você conseguir se acalmar, aos poucos, vai perceber que consegue superar o medo. — Era difícil ouvi-lo daquela posição, mas Alice não estava nem um pouco a fim de se aproximar. Também não estava gostando nada daquela linguagem pseudofilosófica que ele estava usando.
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— Pode ser outro dia? — perguntou ela, desejando que aquilo o convencesse a sair de onde estava.
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— Claro. Temos todo o tempo do mundo.
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Ele girou, colocou os pés na laje e se levantou. Alice sentiu um alívio gigantesco, mas ainda tinha urgência em sair dali. Afinal, o que deu em sua cabeça quando concordou em subir ao terraço sem graça do condomínio?
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André caminhou até a garota, estendeu a mão e ela a segurou. Os dois voltaram à segurança da parte interna do prédio.
IV
Naquele dia os dois conversaram longamente no apartamento em que André morava. Ela descobriu que seu filme favorito era Um Corpo que Cai, de Hitchcock e que aquele filme, de alguma forma, o incentivou a enfrentar seu medo de altura. Ela também descobriu que seu ar de menino cult, não era mera pose. André era entusiasta de Nietzsche. Gostava de filmes escandinavos, especialmente os de Ingmar Bergman. Lia Dostoiévski e Tolstói, mas seu autor favorito era Kafka. Ria assistindo as esquetes e filmes do Monty Python. E, no entanto, ele conseguia se moldar para parecer um jovem comum e ser agradável com as pessoas, sem ser esnobe. Sabia conversar sobre animes e quadrinhos japoneses, saía para assistir filmes de Hollywood com os amigos, acompanhava séries de TV norte-americanas, ouvia rock n’ roll, tocava violão, bebia cerveja e discutia futebol. André era complexo, estranho de certa forma, e Alice se apaixonou de vez por ele naquele dia, apesar do susto que passara lá em cima.
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Algumas semanas depois, retornaram até o terraço. André teimava que ficar lá no alto era uma terapia. Alice não estava convencida, mas topou subir lá novamente. Não foi tão ruim quanto na primeira vez. Conseguiu ultrapassar o poste de telefonia que lhe servira de muleta antes, mas por apenas um passo. André repetiu a cena do outro dia e sentou-se na beira do edifício. Ficaram por alguns instantes conversando, depois saíram, quando Alice começou a se sentir mal.
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Eles repetiram esse passeio bizarro por algumas vezes. André contou seus truques para perder o medo e suas técnicas para evitar que desabasse rumo à morte. Atraída pelo namorado, Alice se aproximava cada dia mais e mais da beirada. Estavam cientes de que aquela atitude era o suprassumo da irresponsabilidade, mas, como bons adolescentes, não fugiam da inconsequência. Um dia ela conseguiu se sentar perto da mureta com as pernas cruzadas, como se fosse praticar ioga. Estava fazendo progresso. Até que chegou o momento em que ela finalmente conseguiu sentar-se ao lado de André na insignificante mureta da borda do prédio, com os pés pendendo no ar. Ficou eufórica com a conquista, mas instantaneamente teve vertigem e precisou sair dali, antes que o pior acontecesse.
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Depois, aquilo virou rotina. Os dois iam constantemente lá para cima. Comiam salgadinhos, assistiam séries pelo celular, conversavam e se beijavam, tudo isso na beira do prédio. No limiar da vida e da morte.
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André tinha razão, a altitude era uma terapia. Os dois corriam para lá, sozinhos ou na companhia um do outro, sempre que se sentiam ansiosos ou angustiados. De tão poderosa, aquela terapia tinha a capacidade de acabar com os sofrimentos de alguém. Até que acabou com os problemas de André de uma vez por todas.
V
Já havia se passado mais de um ano da morte de André. Alice não superara a tragédia. No começo, sentia a presença dele em toda parte e esse sentimento, por mais que soasse macabro, era reconfortante. No entanto, passou. Depois de alguns meses parecia que ele havia partido de vez, abandonando sua namorada para sempre. E aquilo era injusto. Alice sempre estivera com André quando ele precisara. Talvez não nos momentos que antecederam o acidente. Mas aquela foi a única vez que ela o deixou na mão. E, mesmo assim, ela havia corrido para chegar lá antes de ele cair e poder segurá-lo. Só não teve tempo.
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O fato é que agora ela queria sua companhia e sabia que isso seria impossível. Alice estava cursando arquitetura, tirava notas boas, era elogiada por professores, colegas e familiares. Mas sentia falta dos conselhos, críticas, incentivos e atenção de André. Sentia que uma injustiça fora cometida. Seu namorado queria ser cineasta e com sua criatividade, inteligência e seu repertório, ele seria um cineasta dos bons. Seria.
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Um ano e alguns meses da tragédia e o luto persistia. É claro que não o tempo inteiro. Às vezes ela conseguia se divertir, mas quando se lembrava que André não estava com ela, a alegria passava.
Incentivada por quem se importava com ela, Alice tentava se distrair. Como estava tentando naquela ocasião, enquanto bebia com amigos em um bar próximo à faculdade. A propósito, sempre que saía para ambientes mais festivos procurava estar na presença de amigos homens porque isso afastava xavequeiros baratos. Seus amigos que conheciam sua história a respeitavam e não se ofereciam, embora amigas mais antigas insistissem que ela deveria superar a fatalidade e voltar a se relacionar com alguém.
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— Mas todos os meus amigos que já tiveram aula com o Peixoto reclamam que ele é injusto — disse um de seus amigos.
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Estavam falando sobre os critérios de seus professores. Como bons estudantes universitários, tinham um dom incrível para falar sobre as aulas no bar e falar sobre o bar durante as aulas. Mas Alice não estava concentrada no papo.
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Na verdade, a jovem estava pensando em voltar a frequentar o terraço. Talvez aquilo a ajudasse. Após a tragédia, Alice só havia subido lá uma vez, com a polícia para explicar como eles costumavam ficar sentados lá em cima. Depois passou a ter repulsa pelo hábito que ela cultivara durante algum tempo.
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A princípio a polícia trabalhava com três hipóteses para o caso de André: homicídio, suicídio e acidente. Logo a primeira hipótese foi descartada e, posteriormente, os investigadores concluíram o caso como suicídio. Alice não gostou nada daquela conclusão. Concordava que não havia sido homicídio, mas não acreditava em suicídio tampouco. Estava convicta de que fora um acidente. Quando soube da conclusão do inquérito, Alice fora até a delegacia reclamar. Embora uma conclusão, errônea ou correta, das autoridades não pudesse trazer André de volta, ela sentia que taxar seu namorado como um suicida era uma injustiça, uma desonra à sua memória.
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— A mensagem que ele deixou na rede social, o livro que ele estava lendo quando caiu e a posição do corpo indicam que ele se jogou — dissera o policial, na ocasião.
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O livro era Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe. Uma obra que culmina em um suicídio.
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— Ele não faria isso! — Alice bateu o punho na mesa do investigador.
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O policial não demonstrou insatisfação, nem gentiliza.
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— Como você pode ter tanta certeza?
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— Eu já disse isso pra vocês! A gente já tinha conversado sobre suicídio antes e ele deixou bem claro duas coisas: que ele jamais se mataria e que, se por acaso ele mudasse de ideia, pular de um prédio não seria uma opção. Parece que vocês ignoraram meu depoimento. Eu disse que ele tinha medo de altura!
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O policial ficou em silêncio e por um momento Alice suspeitou que ele estava se segurando para não rir. A garota percebeu que estava perdendo tempo e saiu da delegacia.
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Hoje em dia ela continuava acreditando que fora um acidente, mas a possibilidade de suicídio parecia também admissível. Essa incerteza era mais um motivo de angústia.
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— Olha, continuem falando da faculdade porque eu vou é pra pista — disse um de seus amigos.
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Os outros decidiram fazer o mesmo. Chamaram Alice para acompanhá-los, mas ela recusou. Sua amiga Mariana foi a única que preferiu fazer companhia à garota melancólica.
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— Ainda pensando nele, amiga? — perguntou Mariana.
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Alice disse que sim com a cabeça.
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— Alice, já passou do momento de superar isso. — Mariana segurou a mão da amiga em cima da mesa. — Você não precisa esquecer completamente dele, mas você precisa viver sua vida.
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Nenhuma daquelas palavras era novidade para Alice, porém ela ainda estava longe de se deixar convencer.
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— Mas não é justo! Ele me incentivava tanto. Ele era tão companheiro. Nós não merecíamos o que aconteceu!
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— Mas aconteceu. Ele fez uma escolha.
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— Ele não fez uma escolha! — Se o ambiente do bar não estivesse tão barulhento, o grito de Alice teria chamado atenção. — Foi um acidente.
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Mariana ficou alguns instantes caladas e quando voltou a falar, recomeçou de uma outra forma.
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— Mas a mensagem que ele deixou no Facebook antes do que aconteceu...
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— Foi uma coincidência. Ele não iria me abandonar sem me deixar, ao menos, uma mensagem antes.
Mariana tomou um gole de cerveja e Alice fez o mesmo.
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Aquela velha sensação horrível começou a tomar conta de Alice novamente. Era uma angústia sem explicação, perturbadora. Alice precisava voltar para casa urgentemente. Só havia um remédio para diminuir aquela pressão. Um remédio que ela andou evitando por mais de um ano.
VI
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Alice subiu até o patamar da porta que dá acesso ao terraço. Após o acidente, o síndico pedira que ela o entregasse a cópia da chave que abre aquela porta. Ela devolvera uma cópia, porém tinha outra. E, para seu contentamento, a fechadura não havia sido trocada.
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Alice caminhou até o local onde eles costumavam ficar – e de onde André havia caído. Tudo parecia exatamente como antes. As árvores do parque, os carros no estacionamento, a brisa batendo no rosto. Alice sentou-se. A sensação de estar ali no alto continuava boa. Como uma terapia. Passou alguns minutos com os olhos fechados lembrando dos bons momentos de sua vida. Também se pegou pensando em como o tempo apaga o que fica para trás. E isso a fez pensar em como a vida é insignificante. Além dela, quem mais estaria pensando em André? Os pais dele, talvez. Alguns amigos, de vez em quando. Mas quando eles também tiverem partido, o que guardará as marcas e as lembranças da passagem de André pela vida? Se ele ao menos tivesse tido tempo de deixar uma obra para a posteridade... No entanto ele havia partido antes de realizar seus sonhos. E quanto a Alice? Deixaria algo para a posteridade? E esse algo seria efetivamente importante? Havia uma pressão dentro de sua mente, uma pressão ambígua. Se por um lado, uma parte da sua consciência a incentivava a dar o seu melhor, havia também uma corrente pessimista que lhe dizia que nada valeria o esforço.
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Alice abriu os olhos e olhou lá para baixo. O chão parecia convidativo.
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FIM